segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Anjo


Nasci às quinze horas e quarenta e cinco minutos do dia vinte e sete de setembro de mil novecentos e oitenta e três. Fazia sol e, certamente, as crianças corriam pelas ruas e batiam de porta em porta à procura de doces. Era dia de São Cosme e São Damião.
Minha mãe, uma linda mulher nos seus 33 anos, comemorava feliz, ao lado da família, a minha tão esperada chegada. Meu pai, médico famoso e super bem sucedido, nos seus 56 maduros anos, babava pela sua quinta primogênita (além de mim, dois homens e duas mulheres de seu antigo casamento completavam o hall de herdeiros).
Após alguns dias no hospital, fomos para casa. Nela, além de meus pais, morava uma menina de 11 anos, chata, mimada e ciumenta. Era minha irmã Lara, fruto de um casamento de dois meses da minha mãe. Para ela, nada andava bem, principalmente, naquele dia. Alguém havia feito o favor de adentrar a sua casa e invadir um espaço que antes era só seu. Infelizmente, esse alguém era eu.
Para minha felicidade, a campainha toca e eis que surge Maria. Uma portuguesa com certeza, bela e doce como os bolinhos de chuva que preparava todo fim de tarde. Seu sorriso era puro, sua voz suave e seu colo era tudo que qualquer ser humano precisava para sentir o verdadeiro amor encarnado. Ela tinha 48 anos, mas parecia estar no auge da juventude.

Obviamente, não consigo me lembrar da primeira vez que nossos olhos se cruzaram, mas basta um pouco de concentração para sentir com toda vivacidade a fraternidade que brotaria de seus longos afagos. Maria era enfermeira e morava no Brasil há uma década. Depois de longos anos no trabalho com idosos (vale destacar que Nelson Rodrigues morreu em seus braços), iniciava sua jornada com recém nascidos e, eu, era a quarta felizarda.
Não que meus pais não me dessem amor e carinho, mas ela era, indiscutivelmente, uma pessoa especial, abençoada. Solteira desde sempre, sem filhos, dedicava sua vida a cuidar dos outros. Vivia com o pouco que ganhava. Nas folgas, ia para sua casinha em Jacarepaguá, construída através de muito esforço e dedicação, e passava horas ao lado de seus pais. Pegava os bebezinhos com apenas alguns dias de vida e cuidava deles pelos primeiros dois meses. E, assim, ia passando de família em família, de bebê em bebê, feliz por ajudá-los em sua primeira empreitada terrena: sobreviver. Mas, foi após uma semana em nossa casa que ela entenderia exatamente a missão a qual havia sido enviada.
Meus enjôos persistiam ininterruptamente e Maria havia acabado de me dar o remédio prescrito pelo meu avô materno, um renomado clínico geral. Aos poucos, como era esperado, eu ia ficando mais calma. Lara ainda não havia conseguido me olhar desde minha chegada, tamanho era seu ciúme. Mas, naquela tarde de 07 de outubro, ela resolveu driblar sua raiva por meu nascimento e dar uma chance para nosso encontro. Me pegou em seus braços e encarou-me nos olhos. As lágrimas rolavam de seu rosto numa velocidade indescritível e a emoção tomava conta de todo o ambiente. Maria e minha mãe agradeciam a Deus por tamanha graça. Foi um momento mágico.
Eu ia ficando vermelha, meus olhos arregalados. Segundos depois, estava roxa, muito roxa. Mas, isso não fazia parte daquele momento. Alguma coisa estava errada. Lara deu um berro e me jogou nos braços de Maria que, num rompante correu para meu quarto desesperada. Eu havia parado de respirar. Estava agonizando em seu colo. Minha mãe, aos prantos, telefonava para a ambulância, para meu pai, para meu avó, para todos. A moça que trabalhava lá em casa gritava: “É a vontade de Deus!”.
Maria se trancou no quarto e olhando para aquele bebê adormecido em seus braços, não queria acreditar no que estava acontecendo. Era o fim. Eu havia parado de respirar. Sua vida jamais seria a mesma depois desse acontecimento. Muitos já haviam morrido em seus braços, mas, dessa vez, era diferente. Era uma criança. Uma alma pura, indefesa. A jornada mal havia começado. Eu ainda era um anjinho e não poderia retornar aos céus tão cedo.
Em prece constante, resolveu abrir meu guarda-roupa. Era lá que estava guardada a imagem de São Cosme e São Damião que ela havia me dado de presente. Começou a rezar mais e mais. Pedia, desesperadamente, que sua alma fosse levada no lugar da minha. Ao encarar aquela imagem dentro do armário, percebeu que ao seu lado repousava um frasco bem pequeno, de líquido incolor. Num movimento súbito, pegou-o e derramou-o pelas minhas narinas. Nada acontecia... Ela continuava. De repente, um suspiro: “ahn!”. Ele veio tão forte, mas tão forte, que foi suficiente para ela perceber que havia sido instrumento na salvação de uma vida.
Seu choro ergueu-se magnífico. Ela parecia não acreditar no que acabara de acontecer. Sua mente estava confusa demais para tentar entender. Mas, só o tempo explicaria essa missão. A única coisa que ela teve certeza foi de que, naquele momento, nosso destino estava traçado para sempre.

O começo


Hum, por onde começar?
Por que é tão complicado dar início a novos projetos, colocar em prática idéias, sonhos e aspirações?
Estou há um bom tempo querendo ter um blog, mas, aliado a isso, o medo da exposição e, principalmente, a preguiça vêm me impedindo de romper barreiras internas e realizar.
Sexta-feira, 28 de janeiro de 2011, 07:38 da manhã. Algo diferente me tocava a mente. Estava eu, saindo da Barra da Tijuca, a bordo de um táxi, a caminho do aeroporto Santos Dumont. Meu vôo da TAM partiria às 08:42h, mas, mesmo em face do meu previsível atraso (uma das minhas características mais marcantes), meu pensamento varria dimensões bem distantes do cotidiano. Era como se palavras surgissem atropelando meus sentimentos, me levando a lugares jamais visitados por minhas divagações a respeito do mundo e das coisas a sua volta. Uma voz soprava em meus ouvidos. Meu coração batia mais forte. Nunca tive tanta certeza de que deveria seguir minha intuição e me permitir... Viajar por novos horizontes, contar histórias (minhas e dos outros), abrir minha alma para o, até então, inalcançável. Mas, sempre, através das palavras. A noite havia sido boa. Tive certeza.
Não sou escritora, nem tenho pretensão de ser. Sou cineasta e compositora. Fora isso, estudei teatro por muitos anos e fui bailarina desde antes de me entender por gente. Atualmente, trabalho em televisão, componho nas horas vagas, assisto milhares de filmes e devoro qualquer coisa legível que esteja à minha frente.
“Cinqüenta reais”. Aquela voz do taxista me buscou longe demais. De verdade. Ele jamais poderia imaginar aonde meus pensamentos estavam perdidos. Ou achados... Eram 08:16h. No auto-falante, a voz da moça do aeroporto anunciava o fim do check-in para meu vôo. Corri para o balcão e com aquele típico jeitinho brasileiro – que eu, definitivamente, não tenho, mas, naquele momento, surpreendentemente, tive – consegui embarcar. Tudo correu bem na reunião que marquei com a equipe de Sampa. Ficaria lá pelos próximos vinte dias, mas problemas políticos forçaram o cancelamento das gravações.  Às 14:56, eu já estava na sala de embarque aguardando a chamada para meu vôo das 16h. Esses próximos 64 minutos foram cruciais para o nascimento desse blog.
Entrei na internet e teclei a palavra “blog” no Google. Achei um interessante e logo comecei a me inscrever. Mas, que nome daria a ele? Sobre o que falaria? Desliguei meu iPhone num ato de súbita desistência. Grrr... Nada disso! Sem desânimos! Minha aventura mal ameaçava iniciar e eu já estava “dando pra trás”?
“Devoradora de Estórias”. A voz soprou no meu ouvido. Mas, com “E”? Isso mesmo? “Sim”. Ela falou. Hum, melhor pesquisar. Entrei no Google novamente e digitei: “História x Estória”. Depois de ler alguns sites com explicações sobre a diferença dessas palavras, cheguei à conclusão de que, definitivamente, a palavra estória não tinha nada a ver com o que pretendia abordar na minha página virtual. Aquela voz devia estar louca.
Voltei à inscrição do meu blog e tentei:  www.devoradoradehistorias.blogspot.com. Eis que surge um dizer do tipo: “Esse titulo está indisponível. Tente outro”. Ai, caramba, estava me dando mais trabalho do que gostaria. Num gesto de curiosidade, resolvi teclar: www.devoradoradeestorias.blogspot.com. “Título registrado”, apareceu na minha pequena tela. Seria um sinal?
Voltei para uma das páginas de definição da palavra estória que dizia o seguinte: “história fictícia, freqüentemente mirabolante e inverossímil”. A voz voltou a soprar: “toda história por mais real que seja, tem sua ponta de mentira. Todas são estórias”. Meu coração pulou. Melhor aceitar esse título...
Uma voz ecoou em meus ouvidos: “Convidamos os passageiros do vôo 3940 da TAM, a se apresentarem, pois será dado início ao embarque”. Ciente de que, nesse momento, havia sido uma outra voz, bem diferente daquela que me perseguiu por hoje, desliguei meu celular, corri para o avião e voltei para casa, dessa vez com a certeza de que algo estava prestes a mudar...