sábado, 3 de dezembro de 2011

Solidão


Eu não podia acreditar que a Juno havia feito xixi bem no meio da sala – pelo tamanho da desgraça, só podia ter sido ela. Dei meia volta e corri em sua direção, peguei-a com a força de meus dois braços e corri para esfregar seu focinho naquele chão. Apavorada, ela começou a chorar e correu para se esconder embaixo da mesa. Lila me olhava desconfiada; tão desconfiada que resolveu seguir os mesmos passos da irmã. “Coitada da Juno...”, devia estar pensando.
-       Coitada nada! – falei – Ela não sabe que não pode fazer isso?
Passei por cima do estrago e me dirigi à área de serviço e... o que é que é isso? Que sensação de molhado... Ah não!
-       Lilaaaaaaaa!!!! Foi por isso que você se escondeu também, né? Vem aqui que eu vou te mostrar aonde é que se faz uma coisa dessas!!! Assim não é possível! Eu vou dar vocês duas, é isso que eu vou fazer! Pra mim chega!
Continuei falando e reclamando enquanto limpava aquela sujeira toda. A raiva aumentava cada vez que eu passava por elas e as via encolhidas me encarando assustadas. Por um momento, até acreditei que tudo aquilo que eu estava falando era verdade mesmo, mas, foi só olhar para elas abanando o rabinho alguns minutos depois para perceber que tudo não passava de um blefe...
É certo que eu chegara em casa cansada e ignorara solenemente suas boas vindas. Mas, nem um carinho? Nem uma atenção? Exatamente. Nem um carinho, nem uma atenção. Adentrei o recinto, fingi que não existiam – mesmo com aqueles dois seres pulando freneticamente ao meu redor – e fui tomar um banho. O que um ser vivo não é capaz de fazer para chamar atenção... Eu mesma estava doida para que Mateus chegasse. O dia havia sido cheio de novidades e eu precisava contar à ele tim-tim por tim-tim o que havia acontecido. Barulho de chave na porta... Oba! Ele chegou!
-       Oi, meu lindo! – corri para recebê-lo – Quanta saudade! Ainda bem que você chegou! – dei muitos, muitos beijos...
-       Estou morto... Vou tomar um banho.
“Só isso? Era só isso que ele tinha para me dizer depois de um dia inteiro sem a minha companhia?”. Bom, o jeito era esperar ele voltar do banho...
Em menos de cinco minutos ele já estava deitado ao meu lado. Entre alguns beijinhos – meus, apenas meus –, puxei conversa:
-       Como foi seu dia? Alguma novidade?
-       Não, nada de mais.
-       Sei... O meu foi ótimo! Aconteceu tanta coisa...
-       Que bom...
-       É, bom mesmo! Sabe aquela conversa que eu tive com o Fernando? Então, deu certo! Ele vai fazer o que eu sugeri e tem muitas chances do meu projeto acontecer. A Carla, sabe a Carla? Então, ela também adorou! Disse que está dentro com certeza e está empolgadíssima pra... Amor?
Dormiu. Exatamente: ele havia dormido enquanto eu contava uma coisa muito importante. Talvez, a mais importante do ano! Respirei fundo e cheguei à conclusão de que fazer xixi no meio da sala não seria uma boa idéia. Fechei a janela, liguei o ar condicionado, cobri-o com o lençol, apaguei as luzes e dei-lhe um beijo de boa noite:
-       Desculpe, meu anjo – ele sussurrou – Não consegui ficar com os olhos abertos...
-       Não tem problema, amanhã conversamos. Durma bem. Te amo.
Saí do quarto e fui ver que horas eram: nove e meia da noite! De uma sexta-feira ainda por cima! O que fazer agora, já que meus olhos nem manifestavam sinais de fraqueza? Ai, por que eu não aceitei o convite da Beta para ir ao cinema? “Poxa, amiga, hoje não vai dar... Deixa pra semana que vem!”. Ou então o do Michel e da Lena para sair pra jantar? “É, não vai rolar... Estou super cansada e morrendo de saudades do Mateus. Quem sabe amanhã?”. Amanhã nada! Só me interessava o agora!
Parei por um instante a fim de encarar as minhas possibilidades: além do computador, eu tinha mais ou menos uns trezentos livros divididos em oito caixas de mudança, trinta DVDs espalhados no armário da sala, uma infinidade de filmes na TV, um violão, um piano com inúmeras partituras para serem passadas a limpo, meus livros de francês com deveres de casa devidos e pelo menos uns quatro armários clamando por arrumação. Além de duas revistas ainda ensacadas, quatro edições incompletas de palavras cruzadas, uma caixa de bombons turcos, unhas por serem feitas e um monte de contas a pagar na internet. Mas, nada, nada disso me apetecia. Eu queria o meu marido. E, mais do que isso: eu queria atenção!
Pois é, justamente eu que sou super a favor da solidão controlada, de passar momentos divagando com meus pensamentos, de observar, só, o mundo à minha volta. Levanto a bandeira do “antes só do que mal acompanhado” e brigo pela individualidade cotidiana: no cinema, nos almoços, nos cafés, nos jantares, nos shoppings, nos parques e livrarias, nas viagens e nas andanças, pois, para mim, não há, nesse mundo, melhor companhia do que a própria.
Chamei minhas cachorrinhas. Elas vieram na hora. “Como são mais evoluídos do que nós!”, pensei. Em seus lugares, depois do que fiz, não iria jamais... Fiquei brincando com elas por um tempo, mas não o suficiente para sanar minha carência.
Pensei, pensei e, dentre todo o leque de opções, resolvi ler um livro. Os dois que se encontravam na minha cabeceira não eram suficientes para aquele momento. Precisava de algo novo. Mas qual?
A aula de história da arte que assistira ontem sobre Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, ou, simplesmente, Pablo Picasso – também fiquei espantada quando descobri essa quantidade de palavras em um único nome – me fez lembrar que eu comprara em Londres um livro da biografia do artista. Precisava encontrá-lo.
E, como a Lei de Murphy sempre atua, é claro que ele se encontrava na oitava caixa! Ao vê-lo, uma onda de alegria tomou conta de mim: encontrara minha companhia de sexta-feira à noite!
Como com todo livro estreiante, comecei meu ritual: primeiro senti-o em minhas mãos, depois cheirei suas folhas novas, li suas capa e contra-capa, sua introdução e, só então, adentrei o primeiro capítulo. E, foi justamente lá que encontrei um tesouro: um bilhete que Mateus escrevera quando brigamos por causa de... (pausa). A estória é longa. É melhor começar do começo...
-       Burrrrrrro! – gritou, o espanhol.
Mateus parou por um instante a fim de tentar entender se aquela palavra tinha sido dirigida a ele. Sim.
Ele deu meia volta e, bufando, voou até o rapaz, saudando-o com um belo supetão nas costas e um puxão na camisa:
-       Falou comigo?
-       Perdón? – se virou o rapaz, assustado.
-       Eu perguntei se você falou comigo?
-       No, no! Yo no he dicho nada! – finalizou, mais assustado ainda e partiu.
Mateus ficou encarando-o. As sobrancelhas cerradas não escondiam o ódio que jorrava de seu olhar. Ficou parado por segundos que pareceram uma eternidade. Quando despertou, eu já estava longe, bem longe...
Isso aconteceu na saída do metrô de Covent Garden, em Londres, quando estávamos indo comprar ingressos para assistir “O Lago dos Cisnes”, no Royal Ballet. O jovem mal educado pertencia a um grupo de espanhóis que conversava, alheio ao tumulto da hora do rush, praticamente grudado nas roletas da estação. Mateus, ao tentar desviar dos rapazes acabou esbarrando num deles, que sem cerimônia lançou o adjetivo. O que eles não esperavam era que a palavra havia sido dirigida a um brasileiro, que sabia perfeitamente o seu significado. O que eles esperavam menos ainda era que esse sul-americano fosse tirar satisfação de forma tão delicada. Acuados e surpresos, não reagiram. Sorte.
Eu fechei a cara. Por mais que achasse errada a atitude daquele jovem, não podia admitir que Mateus se descontrolasse de tal maneira. De que adiantaria fazer aquilo? E se o grupo tivesse se invocado de verdade e partido para cima dele? A nossa viagem, que apenas começava, poderia ter tido um desfecho trágico...
Tremendo da cabeça aos pés, corri para a bilheteria do teatro. Sem consultá-lo, comprei os ingressos bem longe um do outro. Precisava ficar distante por um tempo. O que eu não imaginava era que esse tempo seria longo demais...
O espetáculo foi incrível. Eu realizara um dos sonhos da minha vida. Por algumas horas, pareci entrar num transe. Um transe bom, muito bom. Uma viagem solitária, cheia de lembranças da minha época como bailarina, com todas aquelas cobranças, todos aqueles sonhos que não se realizaram... Mateus não apareceu nem como figurante em todas essas recordações. Esqueci até aonde estava, com quem estava, por que estava... Fechei-me num mundo inteiramente meu.
Quando as luzes se acenderam, segui sozinha para o hotel. Mateus veio atrás. Lembro que ele sussurrava umas coisas, tentava estabelecer uma conexão comigo, mas, eu estava fechada para qualquer ser que não eu mesma. A atitude imatura do meu marido aliada a viagem magnífica proporcionada por aquela obra de arte havia contribuído significativamente para que eu “bodeasse” do meu homem e desejasse a solidão.
Dormi como um anjo. Acordei bem cedo e parti, deixando Mateus roncando no quarto do hotel. Andei pelas ruas de Londres como uma criança que descobre um brinquedo novo. Entrei em galerias e cafés até avistar meu lugar preferido: a “National Gallery”.
Tomada de extrema felicidade, decidi desbravar aquele museu. Perdi a conta de quantos quadros me entorpeceram. Assisti pequenas palestras sobre Rafael e Cézanne, sentei com grupos escolares para ouvir explicações sobre quadros de Da Vinci e de Monet, tremi quando dei de cara com um Vermeer e chorei ao me deparar com “Marte e Vênus” de Botticelli.
Olhei para o relógio e levei um susto ao constatar que já era tarde. As oito horas que havia percorrido aquelas salas passaram voando. Lembrei de Mateus. Peguei o celular e lá estavam marcadas as quatorze ligações não atendidas. A última delas havia sido há mais de quatro horas atrás. Será que ele desistira de mim? Achei melhor dar um sinal de vida, afinal, estávamos viajando e, obviamente, viagens a dois não são feitas para serem a um.
Ao mesmo tempo que curtia aquela solidão toda, bem longe de casa, começava a sentir falta do meu companheiro. Escrevi: “Estou no melhor lugar do mundo...” e enviei. Saí do museu e fiquei esperando na escadaria. Nada... Nem um sinal de Mateus... Uma enxurrada de gente caminhava de um lado para outro, pediam para que eu tirasse fotos deles, falavam e riam alto, corriam para chegar à estação, mas o meu marido, nada. Nenhum sinal de vida. A certeza de que ele sabia exatamente qual é o melhor lugar do mundo para mim, me tranqüilizava; ele haveria de aparecer.
Oitenta e seis minutos. Foi esse o tempo mais longo de toda a minha vida. Foi esse o tempo que demorou para que um beijo por trás da nuca me despertasse dessa agonia. Contribuí com outro, na boca, em plena Trafalgar Square. Ele me estendeu a mão, eu lhe dei a minha. Ele me estendeu a outra mão e, quando eu ia estender a minha, percebi que um pequeno papel, cheio de passarinhos pintados, estava preso à sua palma. Levei-a até meus olhos. Nele, estava escrito: “Toda a solidão é necessária por tempo determinado. Vamos?”.
Seguimos em silêncio até o metrô. Ao som de “Night and Day”, tocada por um saxofonista indiano, olhei para meu homem e perguntei: “Pra onde?”. 
Aquela noite foi uma das melhores das nossas vidas. Curtimos tanto um ao outro... Estávamos felizes, completos. O incidente da noite anterior havia se diluído sem brigas, sem ressentimentos.  Ah, o tempo! Nada como o tempo! O nosso tempo!
         Agora, numa noite morna de sexta-feira, depois de escrever-lhes e tendo o tal bilhete em minhas mãos, resolvo voltar para a cama e abraçar meu homem, certa de que é chegado ao fim o tempo dessa minha solidão, hoje, importunada.