sábado, 4 de janeiro de 2014

Epílogo

Troco os dias pela noite. Leio, leio, leio, observo a falta de ruídos, leio mais, me concentro na respiração de Mateus apagado a meu lado e leio ainda mais. Artigos, livros, revistas, jornais, assisto vídeos no silencioso e imagino o som que deles se produz. Só então, quando absolutamente todas as luzes dos apartamentos ao meu redor se apagam, eu me ajeito para dormir. O silêncio do mundo me encanta. É nele que florescem meus mais profundos pensamentos. E eles não param. 
Jamais conseguirei meditar. Comentei dia desses com meu chefe que já havia tentado inúmeras vezes, sempre frustradamente. Ele me consolou: "É assim mesmo. Insista nisso que um dia conseguirá". Eu sei que não.
O sono não vem e a vontade de não me desligar desse mundo aumenta. É como se eu não aceitasse o término de um dia, como se desejasse sua infinitude. Um dia bem vivido é um dia para ser eternizado. Quem me garante que o amanhã será calmo, tranqüilo e feliz como o hoje? Se eu tivesse que escolher entre o agora ou o amanhã, não saberia. 
O amanhã me seduz: sonhos a realizar, projetos concretos ou imaginários, filhos, netos, bisnetos, o natal da minha infância de volta, a casa perfeita para receber os amigos, as viagens ao redor do mundo, o encontro com novas culturas, dezenas, centenas, milhares de livros, de filmes, de música, a casa na praia, os bolos de laranja com cobertura de chocolate, cachorros e gatos e meu amor ao lado. A incerteza! O medo... Medo de não ser assim tão perfeito. Medo de algo dar errado no caminho.  Medo de perder o rumo. Medo de não ter quem mais amo por perto.
O presente me conforta. Não tenho tudo que almejo, mas o suficiente para ser feliz. Por toda a eternidade. "O agora é o ideal. Por favor, não me tire nada. Troco todo o meu futuro por agora", sussurrei. “Se o meu agora não permanecer e nem mesmo evoluir, fadarei viver apenas de um passado. Eu era feliz e, sim, sabia”. Não houve resposta.
 Então, eu não durmo. Então, os batimentos aceleram para somente depois de instantes voltarem ao normal. Pego minha luzinha de leitura e acendo-a novamente. Cubro-a com meus dedos e, aos poucos, vou liberando toda a sua luz para o espaço - assim, de de repente, Mateus poderia acordar. Escolho outro livro e debruço-me em suas páginas. Como num piscar de olhos, o sol surge por debaixo da veneziana. Estória boa tem dessas coisas. Bom dia, é hora de me recolher.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Amanhã, eu prometo!


Decidi me obrigar a escrever. Não era possível que há mais de quarto meses eu não tivesse nenhuma inspiração ou nenhum fato que me levasse a teclar. Acho que comecei a me cobrar demais, sabe? Até cheguei a pensar em coisas legais, mas sempre as comparava com outras idéias minhas e nenhuma superava as anteriores. Por isso, desistia do ato e acabava colocando tudo que eu já havia feito até aquele momento num pedestal. Como se fosse impossível repetir o êxito das escritas anteriores. Como se eu tivesse emburrecido... Lia e relia diversas vezes os meus contos... Eu não seria mais capaz daquilo. Se é que um dia fui... Enfim, tomei vergonha na cara e decidi: escreveria, mesmo sem nada para escrever, assim que acordasse, no dia seguinte.
Levantei por volta das dez horas da manhã. Um dia de sol, tranqüilo como os bons de inverno. Passarinhos cantavam, crianças brincavam, minha faxineira trabalhava num silêncio sepulcral. O ambiente não poderia ser mais propício à escrita.
Abri meu computador, entrei no meu e-mail, depois no facebook. Resolvi não ter assuntos pendentes no início do dia. Acabei respondendo coisas do trabalho e algumas mensagens de amigos. Faltavam oito minutos para as onze horas e pensei que poderia tirar esse tempinho para ler as manchetes do jornal. Ih, caramba! Estão acontecendo as Olimpíadas! Ah, como eu gosto dessas competições! A semana foi tão corrida que eu não havia conseguido acompanhar nada. Dei-me o luxo de me inteirar do assunto e quando dei por conta, já eram onze e vinte e quatro. Portadora de “toque” que sou, preferi gastar esses últimos seis minutos que faltavam para as onze e meia para fazer um xixi e beber um copo de água.
Tentei passar despercebida pela Dila no caminho até a cozinha, mas não consegui. Quando ela desata a falar, já era! E ela desatou... Falou sobre como as minhas cachorrinhas estão mal-educadas, contou a briga que teve com a vizinha por causa disso, pediu minha ajuda para completar a lista de compras e ainda falou sobre seus problemas conjugais. Tudo isso para minha tristeza... Já passava de meio-dia e quarenta. Era hora de almoçar!
E, temos que convir que, depois do almoço, não dá para fazer nada, né? Deitei na cama e liguei a TV. A minha ânsia por acompanhar os jogos era tão grande que fiquei assistindo tênis de mesa! Zapeava de um canal para outro: um pouco de ciclismo, um pouco de handball, um pouquinho de atletismo e mais um pouco de natação. A minha sesta merecida e acordada por mim, comigo mesma, durou umas duas horas.
Quando me senti preparada para escrever, sentei na cama e abri meu computador. Opa, chegou aquele e-mail que eu estava esperando. E também um monte de outros do meu trabalho. Não posso abandoná-los e trocá-los pela minha escrita. Responsabilidade em primeiro lugar! Resolvi respondê-los. Eram uns quinze mais ou menos. Como eu posso ser capaz de receber tantos e-mails em tão curto espaço de tempo? É a “perseguição digital”! Que loucura! Dia desses, estava na casa de Maria. Tinha ido buscar minhas filhotas caninas que haviam passado uns dias lá por conta de uma viagem que precisei fazer. Resolvi ficar mais um tempinho aproveitando o carinho de mãe. A minha avó Lida e a Irene, uma vizinha das antigas, também estavam por lá. Cheguei bem na hora da novela. Maldita hora! As três, imóveis que estavam de frente para a TV, imóveis ficaram. Sentei na poltrona ao lado delas e esperei, esperei, esperei... Peguei meu celular e me dei conta de que do caminho do trabalho até a casa de Maria havia recebido dezoito e-mails. Bom, pensei, já que minhas idosas estão tão entretidas em assuntos aleatórios, vou responder esse monte de coisa. Fiquei uns quarenta minutos na atividade. Quando a novela acabou, faltavam apenas uns três e-mails. Maria ficou tentando puxar conversa, Irene também, mas, faltavam tão poucos para eu me ver livre. Esse tal de “toque” é um problema. Não posso deixar nada pendente nas minhas caixas de correio. Aqueles numerozinhos que ficam aparecendo em cima, indicando quantos e-mails ainda não foram lidos, me enlouquecem! Tenho que estar zerada sempre! Impaciente, cinco minutos depois de a novela acabar, Irene disse: “A Flora não é mais a mesma... Vem pra cá pra ficar jogando no celular!”. Jogando no celular??? Vê se pode! A pessoa trabalhando e os outros fazendo falso julgamento.
Fiquei lembrando dessa história e me deu vontade de pesquisar o número médio de e-mails que as pessoas recebem por dia. Cento e cinqüenta e seis. Sendo que desse número, noventa por cento é spam. Ou seja, as pessoas recebem em média dezesseis e-mails por dia. Eu recebo, mais ou menos isso, por hora!
Olhei para o relógio: três e cinqüenta e dois da tarde. Às quatro e nove, Cesar Cielo iria nadar os cinqüenta metros em busca do ouro! Definitivamente, eu não escreveria muita coisa nos dezessete minutos que faltavam para a competição. Fechei o computador e voltei a ligar a TV. O tempo demorou a passar, mas chegou. Meu coração disparava. Parecia que era eu quem ia nadar! Resolvi colocar essa emoção para fora e fiquei dando pulinhos na cama e gritando “Vai, Vai, Vai!”. Vai nada... O cara chegou em terceiro lugar... Não que um terceiro lugar numa Olimpíada seja ruim, mas foi aquém das minhas expectativas. Era hora de tomar um banho depois de tanta agitação...
O relógio marcava quase cinco horas. Era isso! Às cinco em ponto eu começaria a escrever. Esvaziei a mesa lotada de papéis velhos e inúteis e... Que barulho era esse? Eu não podia acreditar que as minhas duas cachorras seriam capazes de um escândalo como esse! Corri até a sala e constatei que sim, elas latiam compulsivamente para o rapaz da Pet Shop. Dei um baita esporro nelas, coloquei ordem na casa e fiz o maior sermão depois que o cara foi embora. Dila me olhava tensa e eu falava: “Você tem que me ajudar a educar elas! Não pode simplesmente não fazer nada enquanto elas latem de maneira descontrolada! Por isso, é que elas estão sem limites!”. As três me olhavam assustadas, caladas! Passava das cinco horas e agora eu teria que esperar até às cinco e meia.
Voltei para o quarto pra cumprir minha missão. Abri o computador e ele não ligou... Putz, bateria... Pluguei-o na fonte e fiquei esperando ele dar sinal de vida... Demorou um pouquinho até ele acender a luzinha. Tempo suficiente para eu me preparar.
Bateu uma preguiça... Peguei meu livro de cabeceira. Resolvi ler algumas páginas até a hora programada para eu começar a escrever. O problema foi que eu não consegui largar aquela leitura. Faltavam poucas páginas para seu fim e o autor fazia revelações drásticas e surpreendentes. Decidi que seis horas era uma hora boa e cabalística para começar a escrever. Até lá, leria mais um pouquinho...
Quando faltavam poucos minutos, fechei – contra a minha vontade – o meu livro e abri o computador. Me forcei a não olhar meus e-mails e venci – contra a minha vontade – o fato do número onze aparecer na minha caixa de entrada e eu não poder fazer nada para resolver isso. Entrei somente no facebook. E, nossa! Uma amiga minha tinha postado um vídeo incrível sobre um senhor com Alzheimer que foi salvo pela música. Me emocionei à beça... Viajei pensando nas coisas que as pessoas que cuidavam dele relataram... Fiquei tão inspirada por isso e numa energia tão boa que baixei um arquivo com várias músicas de Tchaikovsky. Achei que combinavam perfeitamente com aquele momento.
Mas, foquei – foco, Flora! – e lembrei que tinha um objetivo no dia: escrever. Mas, já passava das seis horas e o computador ainda não estava completamente carregado. Oitenta e quatro por cento de bateria... Achei melhor esperar os cem por cento para começar com chave de ouro!
Enquanto isso, fui responder meus e-mails. Aí, fiz umas ligações de trabalho, aí, Mateus me ligou, aí, Maria me ligou também, aí, eu lembrei que era dia de vencimento de umas contas, aí, eu decidi pagá-las e depois organizá-las em minha pasta, aí, me deu vontade de arrumar na mesa da sala o conjunto de velas que trouxemos de Tiradentes, aí, me bateu uma fome enorme e eu fui lanchar uma coisinha bem rápida e bem calórica por sinal. Aí, Mateus ligou de novo dizendo que estava chegando e que tinha marcado um jantar daqui a trinta minutos com o João e a Malu, aí, eu me dei conta que já eram oito e vinte da noite e que eu tinha que tomar banho para me arrumar. Mas, aí, eu me dei mais conta ainda de que não havia estudado francês por uma hora, como havia prometido ontem; de que não havia nadado os mil e quinhentos metros como havia prometido ontem; de que não havia começado a minha dieta, nem ligado para marcar a dermatologista, nem ido tomar a minha vacina contra tétano como havia prometido ontem. E pra ficar mais frustrada ainda, me dei conta de que não havia escrito nada como prometera ontem, pois isso que vocês acabaram de ler é puro fruto da imaginação de vocês; pois isso que vocês acabaram de ler eu não seria capaz de escrever; pois isso que vocês acabaram de ler não quer dizer nada... Mas, amanhã, eu prometo: faço tudo isso e ainda levo as meninas para passear!

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Cotidiano - O Frentista Culto

No posto de gasolina:
Frentista - Esse carro é o Fiat 500?
Eu - É sim.
Frentista - Sabia que ele foi lançado em comemoração aos 500 anos da Fiat?
Eu - (sem acreditar no que acabara de ouvir) Não, acho que não...
Frentista - (convicto) Sim, foi sim!!!
Eu - (achando melhor não contrariar) Será? É, pode ser... Bom, agora está explicada a origem desse nome!
Frentista - (feliz da vida) Está vendo? Abastecer o carro também é cultura!

E bota cultura nisso! Pelo visto, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil num Uno!!!

domingo, 1 de abril de 2012

Surpresa


Fiquei numa dúvida cruel sobre contar ou não contar o que estou prestes a contar. Na verdade, tenho essa dúvida há mais de dez anos. Ela foi intensa nas primeiras 72 horas, mas depois, ela desapareceu. Havia decidido enterrá-la para sempre. O problema é que esse “para sempre” durou apenas 10 anos, 4 meses e 28 dias.
Foi quando a vontade louca de contar o que estou prestes a contar voltou a tomar conta de mim por inteiro. Não que eu ache que isso vá ter alguma conseqüência nos dias de hoje. Analisando bem, não teria. Mas, então, para quê contar? Há coisas na vida que a gente tem controle. Há coisas que não.
Faltavam três dias para completar meus dezoito anos. Apenas algumas horas me separavam da tão sonhada entrada em boates e casas de show. Estava cansada de viver como uma criminosa ou fugitiva e ter que driblar o coração acelerado e a cara de “sou menor, com certeza” todas as vezes que apresentava a minha carteira de identidade falsa. Era chegada a hora de esfregar a original na cara de todos aqueles que tiveram a audácia de me barrar e estragar minhas noites adolescentes.
Naquela época, eu ainda vivia dividida entre três casas: a do pai, a da mãe e a de Maria. E, como toda aquela empolgação pela vida noturna era fachada, decidi comemorar a data do meu aniversário no meu restaurante preferido e chamar apenas os amigos.
Fui para a sala do apartamento da minha mãe e comecei a ligar para todos. Há muitos anos eu não comemorava meu aniversário, sempre na esperança de que fizessem alguma festa surpresa para mim. Na escola, era praxe: você chegava de manhã, todos fingiam que não sabiam que era seu aniversário, mas, na hora do recreio viam com bolo, refrigerante, balões e cartazes carinhosos. Era sempre assim. Ou melhor: tirando comigo, era sempre assim.
Quando eu era pequena, era super popular no colégio. Ganhava as eleições para ser representante de turma, tirava medalhas de ouro nas olimpíadas e, ainda por cima, era a melhor aluna da série. Com o tempo, a minha fama desandou... Até hoje não sei muito bem porque isso aconteceu. Talvez eu tenha ficado chata. Talvez eu tenha me ausentado demais e me dedicado apenas a minha vida como bailarina. Passava as tardes e as noites dançando, ensaiando e costumava ir à escola apenas para dormir. Sentava na última cadeira, lá no canto, posicionava meu casaco como um belo travesseiro e apagava. Só acordava mesmo quando a inspetora chegava: “Flora, está na hora do recreio, você tem que sair”. E lá ia eu para uma salinha no prédio anexo que tinha um piano. Ficava os vinte minutos do recreio tocando os mesmos “Noturnos” de Chopin. Todo o dia era assim. Depois, voltava para a sala e dormia de novo até a hora da saída.
Faltava que era uma maravilha! Lembro de um ano em que tive cinqüenta faltas. Fui chamada na supervisão e tudo. Diziam que eu já estava estourando a cota de faltas anuais e que seria reprovada. Eu sabia que não. Continuava tirando as melhores notas e liderando o ranking com folga. Mas, mesmo assim, decidi não faltar mais...
A Serena era minha única companheira. Acho que para ela eu nunca fiquei chata. Ela me entendia e me amava como sempre. Seus olhos ingênuos de ingênuos não tinham nada. Cheia de amigos, até fazia uma força para as pessoas gostarem de mim. Não tinha muito jeito. A repulsa era a mesma sempre. Eu já estava acostumada. O que me animava era que faltava bem pouco para o vestibular chegar e logo eu iria estudar em outro lugar e recomeçar do zero.
Foi quando eu já havia aceitado minha solidão escolar, que duas meninas resolveram se aproximar. Duas meninas muito populares por sinal: Daniela e Daniele. Elas eram lindas, loiras, com aquele típico corpo adolescente bem formado. Os meninos eram loucos por elas. Não sei muito bem até hoje o que elas viram em mim: feia, esquisita e cdf. Só sei que fomos ficando amigas, muito amigas mesmo. Elas achavam graça na minha ineficiência em lidar com os outros. Achavam mais graça ainda na minha cara de pau e na minha capacidade de dormir em todas aulas e continuar tirando dez. A minha “esquisitisse” atraía elas e nós nos completávamos em cada descoberta.
Os meus recreios passaram a ser bem animados. Eu descobria a sensação de passar vinte minutos do dia sentada numa mesa com um monte de adolescente falando bobagem. Aos poucos, eu ia me soltando e falando bobagens também. Serena parecia não acreditar. Sem perder tempo se juntou a nós e agregou os seus. Éramos, então, um grupo feliz.
Era para esse grupo que eu ligava naquela noite que antecedia em algumas horas a chegada da minha maioridade. Apesar de ter amigos agora, resolvi não arriscar a festa surpresa do colégio (realizar um sonho como esse seria bom demais para ser verdade). Já havia ligado para mais de dez amigos quando a minha mãe – a biológica – apareceu na sala:
-                    Flora, eu não ia te falar, mas como estou vendo você ligar para um monte de gente, achei melhor contar: os seus amigos do colégio estão preparando uma festa surpresa pra você na casa da Serena.
Até hoje não consigo descrever o que senti naquele momento. Fiquei muda. Os olhos arregalados, a testa franzida, a boca aberta... Não tive vontade de sorrir nem de chorar.
-                    Você ouviu o que eu falei, Flora?
-                    Aham...
-                    Avisa logo a Serena que você está marcando com um monte de gente. De repente, você manda todo mundo para a casa dela.
 Ela jogou esse monte de palavras em cima de mim e saiu.
"Com um monte de gente?" Que monte de gente? Que mãe era essa que não sabia que eu não tinha “um monte de gente” de amigos? E se eu tivesse? Não seria mais óbvio ela ligar para a Serena e dizer que eu estava chamando esse “monte de gente” para um jantar? Minhas amigas do colégio dariam um jeito. Não é assim que acontece em todas as festas surpresas? Sim. Menos na minha.
Fui para o meu quarto e liguei para a Maria. Quando ela atendeu, não consegui falar. Comecei a chorar compulsivamente. Foi quando entendi que o golpe havia sido certeiro... Ela parecia não acreditar no que a minha mãe havia feito. Meu pranto revoltou ela num grau inimaginável. Maria sabia que eu não tinha esse “monte de amigos”. Maria sabia que essa surpresa seria responsável, quiçá, pelo surgimento do dia mais feliz da minha vida. Ela não parava de repetir: “Por que ela fez isso, meu Deus? Por que?”. Se ela não sabia, muito menos eu.
Decidi que a frustração seria só minha. Decidi que a minha mãe só iria conseguir estragar a minha surpresa. A felicidade dos meus amigos em proporcionar aquele momento para mim, não.
Chorei a noite inteira. Quando digo a noite inteira, é porque foi quase a noite inteira mesmo. Ficava imaginando como seria bom não ter sabido de nada. Como seria mágico ser celebrada por todos assim, de repente! Eu jamais poderia crer que fariam uma festa surpresa para mim. Seria a primeira vez que eu veria todos se mobilizando para fazer algo que não fossem as festinhas convencionais do recreio. E o melhor de tudo: seria para mim! Só para mim!
Fiquei pedindo a Deus para acordar no dia seguinte sem saber de nada. Pedi tanto, tanto, que acreditei que seria abençoada. Voltei a ligar para Maria de madrugada:
-                    Má?
-                    Oi, minha querida... Não está conseguindo dormir?
-                    Não... Mas, não estou ligando por isso. Estou ligando para dizer que eu pedi muito, muito mesmo para que Deus apague isso da minha memória. Eu pedi com tanta fé que acredito que dê certo. Então, se amanhã quando nos falarmos, eu não tocar no assunto, por favor, não diga nada. Certamente, será porque o meu desejo foi atendido...
Foi só depois disso que eu consegui dormir um pouquinho.
Quando o despertador tocou, não pestanejei. Corri até o quarto da minha mãe e falei:
-                    Você acabou com o meu aniversário. Só que eu não vou fazer o mesmo com os meus amigos. Você trate de ficar com a boca fechada, entendeu?
Cheguei na escola com os olhos inchados. Dentro de mim, um misto de raiva e felicidade fazia confusão. Olhei para os meus amigos com outros olhos... Olhos de gratidão. Amei-os mais a cada instante.
Passei os dois dias que antecederam a minha data fingindo para o espelho a minha cara de surpresa. Fingi para Maria ver também. E, como ela disse que estava bem crível, relaxei. Em outros momentos, chorava. Por todos os motivos pelos quais deveria.
O mais engraçado era ver todos falando comigo como se não soubessem de nada, como se fôssemos apenas jantar fora. Eles pensaram em tudo com tanto amor e queriam que tudo desse tão certo que até, no grande dia, fizeram aquela surpresinha de praxe na hora do recreio. Tudo para que eu não pudesse desconfiar do que estaria por vir.
Eu, claro, dificultei ao máximo. Eles queriam me buscar em casa e eu disse que iria de táxi, depois, resolvi adiantar em uma hora o encontro para criar um pouco de adrenalina e eles inventaram um monte de desculpas. Os meus amigos, do lado de lá, fazendo de tudo para que eu não desconfiasse de nada e, eu, do lado de cá, fazendo de tudo para que eles não desconfiassem de nada...
Acabei cedendo à carona e as “Danis” me levariam até o encontro. Lembro, até hoje, do quanto meu coração bateu forte minutos antes de elas chegarem. Sentei ao piano e fiquei tocando todos aqueles “Noturnos” de Chopin que me acompanharam em tantos recreios solitários. Um misto de ansiedade e felicidade tomou conta de mim.
Na chegada à casa de Serena, fingi magistralmente a cara de surpresa. Chorei e tudo! Mas, chorei de verdade. Apesar da tristeza que antecedeu aquele momento, ver todos os meus amigos ali, para mim, foi um sonho realizado. E, é claro que a minha mãe não havia ido, mas, isso não importava: Maria estava lá!
-                    Você desconfiava de alguma coisa? – ela perguntou
-                    Como assim, Má? Você sabia que eu sabia de tudo!
-                    É que a sua reação foi tão perfeita que eu achei que o seu pedido havia se realizado...
-                    Não, esse pedido não... Mas, o outro sim!
-                    Qual outro?
-                    O de ter um monte de amigos!
Ela riu, me abraçou bem forte e nós curtimos a noite à beça. A felicidade dos meus amigos de me proporcionarem aquela felicidade bastou para mim e para ela.
Esse ano, na comemoração da terceira década do Mateus, eu decidi que faria uma festa surpresa. E fiz. Um festão. Cuidei de cada detalhe, de cada convite, de cada telefonema para que nada, nada, nada mesmo chegasse até os ouvidos dele. Eu queria muito que ele conseguisse sentir o que eu não pude há anos atrás.
Na noite do seu aniversário, quando abri a porta da casa de festas para Mateus, percebi que o meu coração bateu da mesma maneira de quando Serena abriu a porta de sua casa para mim. E quando todos gritaram “Surpresa”, eu consegui me sentir amada como quando Serena, Chico, as “Danis” e meus outros novos amigos seguraram balões e estouraram confetes.

        A emoção do Mateus, sim, foi legítima. Foi ali que eu vi como é ser surpreendido de verdade: o tempo pára completamente, o ar parece que vai faltar... Ele olhava para mim e repetia: “O que eu faço? O que eu faço?”, enquanto todos berravam “Parabéns pra você...”. Aquilo sim era uma emoção verdadeira. Aquilo sim era o que eu deveria ter sentido naquela noite. Aquilo sim, era o que me fora roubado...
O tempo passou, muitos anos se passaram e a pergunta que não quer calar é: Por que vir com isso tudo à tona depois de tanto tempo? Simplesmente, porque há coisas na vida que a gente tem controle. Há coisas que não.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Solidão


Eu não podia acreditar que a Juno havia feito xixi bem no meio da sala – pelo tamanho da desgraça, só podia ter sido ela. Dei meia volta e corri em sua direção, peguei-a com a força de meus dois braços e corri para esfregar seu focinho naquele chão. Apavorada, ela começou a chorar e correu para se esconder embaixo da mesa. Lila me olhava desconfiada; tão desconfiada que resolveu seguir os mesmos passos da irmã. “Coitada da Juno...”, devia estar pensando.
-       Coitada nada! – falei – Ela não sabe que não pode fazer isso?
Passei por cima do estrago e me dirigi à área de serviço e... o que é que é isso? Que sensação de molhado... Ah não!
-       Lilaaaaaaaa!!!! Foi por isso que você se escondeu também, né? Vem aqui que eu vou te mostrar aonde é que se faz uma coisa dessas!!! Assim não é possível! Eu vou dar vocês duas, é isso que eu vou fazer! Pra mim chega!
Continuei falando e reclamando enquanto limpava aquela sujeira toda. A raiva aumentava cada vez que eu passava por elas e as via encolhidas me encarando assustadas. Por um momento, até acreditei que tudo aquilo que eu estava falando era verdade mesmo, mas, foi só olhar para elas abanando o rabinho alguns minutos depois para perceber que tudo não passava de um blefe...
É certo que eu chegara em casa cansada e ignorara solenemente suas boas vindas. Mas, nem um carinho? Nem uma atenção? Exatamente. Nem um carinho, nem uma atenção. Adentrei o recinto, fingi que não existiam – mesmo com aqueles dois seres pulando freneticamente ao meu redor – e fui tomar um banho. O que um ser vivo não é capaz de fazer para chamar atenção... Eu mesma estava doida para que Mateus chegasse. O dia havia sido cheio de novidades e eu precisava contar à ele tim-tim por tim-tim o que havia acontecido. Barulho de chave na porta... Oba! Ele chegou!
-       Oi, meu lindo! – corri para recebê-lo – Quanta saudade! Ainda bem que você chegou! – dei muitos, muitos beijos...
-       Estou morto... Vou tomar um banho.
“Só isso? Era só isso que ele tinha para me dizer depois de um dia inteiro sem a minha companhia?”. Bom, o jeito era esperar ele voltar do banho...
Em menos de cinco minutos ele já estava deitado ao meu lado. Entre alguns beijinhos – meus, apenas meus –, puxei conversa:
-       Como foi seu dia? Alguma novidade?
-       Não, nada de mais.
-       Sei... O meu foi ótimo! Aconteceu tanta coisa...
-       Que bom...
-       É, bom mesmo! Sabe aquela conversa que eu tive com o Fernando? Então, deu certo! Ele vai fazer o que eu sugeri e tem muitas chances do meu projeto acontecer. A Carla, sabe a Carla? Então, ela também adorou! Disse que está dentro com certeza e está empolgadíssima pra... Amor?
Dormiu. Exatamente: ele havia dormido enquanto eu contava uma coisa muito importante. Talvez, a mais importante do ano! Respirei fundo e cheguei à conclusão de que fazer xixi no meio da sala não seria uma boa idéia. Fechei a janela, liguei o ar condicionado, cobri-o com o lençol, apaguei as luzes e dei-lhe um beijo de boa noite:
-       Desculpe, meu anjo – ele sussurrou – Não consegui ficar com os olhos abertos...
-       Não tem problema, amanhã conversamos. Durma bem. Te amo.
Saí do quarto e fui ver que horas eram: nove e meia da noite! De uma sexta-feira ainda por cima! O que fazer agora, já que meus olhos nem manifestavam sinais de fraqueza? Ai, por que eu não aceitei o convite da Beta para ir ao cinema? “Poxa, amiga, hoje não vai dar... Deixa pra semana que vem!”. Ou então o do Michel e da Lena para sair pra jantar? “É, não vai rolar... Estou super cansada e morrendo de saudades do Mateus. Quem sabe amanhã?”. Amanhã nada! Só me interessava o agora!
Parei por um instante a fim de encarar as minhas possibilidades: além do computador, eu tinha mais ou menos uns trezentos livros divididos em oito caixas de mudança, trinta DVDs espalhados no armário da sala, uma infinidade de filmes na TV, um violão, um piano com inúmeras partituras para serem passadas a limpo, meus livros de francês com deveres de casa devidos e pelo menos uns quatro armários clamando por arrumação. Além de duas revistas ainda ensacadas, quatro edições incompletas de palavras cruzadas, uma caixa de bombons turcos, unhas por serem feitas e um monte de contas a pagar na internet. Mas, nada, nada disso me apetecia. Eu queria o meu marido. E, mais do que isso: eu queria atenção!
Pois é, justamente eu que sou super a favor da solidão controlada, de passar momentos divagando com meus pensamentos, de observar, só, o mundo à minha volta. Levanto a bandeira do “antes só do que mal acompanhado” e brigo pela individualidade cotidiana: no cinema, nos almoços, nos cafés, nos jantares, nos shoppings, nos parques e livrarias, nas viagens e nas andanças, pois, para mim, não há, nesse mundo, melhor companhia do que a própria.
Chamei minhas cachorrinhas. Elas vieram na hora. “Como são mais evoluídos do que nós!”, pensei. Em seus lugares, depois do que fiz, não iria jamais... Fiquei brincando com elas por um tempo, mas não o suficiente para sanar minha carência.
Pensei, pensei e, dentre todo o leque de opções, resolvi ler um livro. Os dois que se encontravam na minha cabeceira não eram suficientes para aquele momento. Precisava de algo novo. Mas qual?
A aula de história da arte que assistira ontem sobre Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, ou, simplesmente, Pablo Picasso – também fiquei espantada quando descobri essa quantidade de palavras em um único nome – me fez lembrar que eu comprara em Londres um livro da biografia do artista. Precisava encontrá-lo.
E, como a Lei de Murphy sempre atua, é claro que ele se encontrava na oitava caixa! Ao vê-lo, uma onda de alegria tomou conta de mim: encontrara minha companhia de sexta-feira à noite!
Como com todo livro estreiante, comecei meu ritual: primeiro senti-o em minhas mãos, depois cheirei suas folhas novas, li suas capa e contra-capa, sua introdução e, só então, adentrei o primeiro capítulo. E, foi justamente lá que encontrei um tesouro: um bilhete que Mateus escrevera quando brigamos por causa de... (pausa). A estória é longa. É melhor começar do começo...
-       Burrrrrrro! – gritou, o espanhol.
Mateus parou por um instante a fim de tentar entender se aquela palavra tinha sido dirigida a ele. Sim.
Ele deu meia volta e, bufando, voou até o rapaz, saudando-o com um belo supetão nas costas e um puxão na camisa:
-       Falou comigo?
-       Perdón? – se virou o rapaz, assustado.
-       Eu perguntei se você falou comigo?
-       No, no! Yo no he dicho nada! – finalizou, mais assustado ainda e partiu.
Mateus ficou encarando-o. As sobrancelhas cerradas não escondiam o ódio que jorrava de seu olhar. Ficou parado por segundos que pareceram uma eternidade. Quando despertou, eu já estava longe, bem longe...
Isso aconteceu na saída do metrô de Covent Garden, em Londres, quando estávamos indo comprar ingressos para assistir “O Lago dos Cisnes”, no Royal Ballet. O jovem mal educado pertencia a um grupo de espanhóis que conversava, alheio ao tumulto da hora do rush, praticamente grudado nas roletas da estação. Mateus, ao tentar desviar dos rapazes acabou esbarrando num deles, que sem cerimônia lançou o adjetivo. O que eles não esperavam era que a palavra havia sido dirigida a um brasileiro, que sabia perfeitamente o seu significado. O que eles esperavam menos ainda era que esse sul-americano fosse tirar satisfação de forma tão delicada. Acuados e surpresos, não reagiram. Sorte.
Eu fechei a cara. Por mais que achasse errada a atitude daquele jovem, não podia admitir que Mateus se descontrolasse de tal maneira. De que adiantaria fazer aquilo? E se o grupo tivesse se invocado de verdade e partido para cima dele? A nossa viagem, que apenas começava, poderia ter tido um desfecho trágico...
Tremendo da cabeça aos pés, corri para a bilheteria do teatro. Sem consultá-lo, comprei os ingressos bem longe um do outro. Precisava ficar distante por um tempo. O que eu não imaginava era que esse tempo seria longo demais...
O espetáculo foi incrível. Eu realizara um dos sonhos da minha vida. Por algumas horas, pareci entrar num transe. Um transe bom, muito bom. Uma viagem solitária, cheia de lembranças da minha época como bailarina, com todas aquelas cobranças, todos aqueles sonhos que não se realizaram... Mateus não apareceu nem como figurante em todas essas recordações. Esqueci até aonde estava, com quem estava, por que estava... Fechei-me num mundo inteiramente meu.
Quando as luzes se acenderam, segui sozinha para o hotel. Mateus veio atrás. Lembro que ele sussurrava umas coisas, tentava estabelecer uma conexão comigo, mas, eu estava fechada para qualquer ser que não eu mesma. A atitude imatura do meu marido aliada a viagem magnífica proporcionada por aquela obra de arte havia contribuído significativamente para que eu “bodeasse” do meu homem e desejasse a solidão.
Dormi como um anjo. Acordei bem cedo e parti, deixando Mateus roncando no quarto do hotel. Andei pelas ruas de Londres como uma criança que descobre um brinquedo novo. Entrei em galerias e cafés até avistar meu lugar preferido: a “National Gallery”.
Tomada de extrema felicidade, decidi desbravar aquele museu. Perdi a conta de quantos quadros me entorpeceram. Assisti pequenas palestras sobre Rafael e Cézanne, sentei com grupos escolares para ouvir explicações sobre quadros de Da Vinci e de Monet, tremi quando dei de cara com um Vermeer e chorei ao me deparar com “Marte e Vênus” de Botticelli.
Olhei para o relógio e levei um susto ao constatar que já era tarde. As oito horas que havia percorrido aquelas salas passaram voando. Lembrei de Mateus. Peguei o celular e lá estavam marcadas as quatorze ligações não atendidas. A última delas havia sido há mais de quatro horas atrás. Será que ele desistira de mim? Achei melhor dar um sinal de vida, afinal, estávamos viajando e, obviamente, viagens a dois não são feitas para serem a um.
Ao mesmo tempo que curtia aquela solidão toda, bem longe de casa, começava a sentir falta do meu companheiro. Escrevi: “Estou no melhor lugar do mundo...” e enviei. Saí do museu e fiquei esperando na escadaria. Nada... Nem um sinal de Mateus... Uma enxurrada de gente caminhava de um lado para outro, pediam para que eu tirasse fotos deles, falavam e riam alto, corriam para chegar à estação, mas o meu marido, nada. Nenhum sinal de vida. A certeza de que ele sabia exatamente qual é o melhor lugar do mundo para mim, me tranqüilizava; ele haveria de aparecer.
Oitenta e seis minutos. Foi esse o tempo mais longo de toda a minha vida. Foi esse o tempo que demorou para que um beijo por trás da nuca me despertasse dessa agonia. Contribuí com outro, na boca, em plena Trafalgar Square. Ele me estendeu a mão, eu lhe dei a minha. Ele me estendeu a outra mão e, quando eu ia estender a minha, percebi que um pequeno papel, cheio de passarinhos pintados, estava preso à sua palma. Levei-a até meus olhos. Nele, estava escrito: “Toda a solidão é necessária por tempo determinado. Vamos?”.
Seguimos em silêncio até o metrô. Ao som de “Night and Day”, tocada por um saxofonista indiano, olhei para meu homem e perguntei: “Pra onde?”. 
Aquela noite foi uma das melhores das nossas vidas. Curtimos tanto um ao outro... Estávamos felizes, completos. O incidente da noite anterior havia se diluído sem brigas, sem ressentimentos.  Ah, o tempo! Nada como o tempo! O nosso tempo!
         Agora, numa noite morna de sexta-feira, depois de escrever-lhes e tendo o tal bilhete em minhas mãos, resolvo voltar para a cama e abraçar meu homem, certa de que é chegado ao fim o tempo dessa minha solidão, hoje, importunada.

sábado, 22 de outubro de 2011

Última homenagem


Nunca sei muito bem como começar a escrever um texto. Costumo ficar alguns minutos parada, encarando a tela do computador e pensando, pensando, pensando... As palavras que forem escolhidas por mim irão eternizar um momento, um pensamento e ficarão marcadas exatamente daquela única maneira para sempre. Quando me dou conta disso, quase desisto. São tantas as formas de se contar uma mesma estória que para uma pessoa, indecisa como eu, isso é desencorajador. Mas, entre escolher aquela única maneira de contar ou não contar eu, quase sempre, opto pela primeira opção.
Mesmo depois de escrever esse primeiro parágrafo e achar que ele seria perfeito para me fazer embalar no que quero lhes contar, me vejo agora parada novamente, encarando a tela do computador. Como é difícil...
Pensei em começar assim:
“Há um mês atrás, a avó de Mateus recebeu o convite do aniversário de oitenta anos de seu irmão mais novo. Ela, um tanto debilitada nos seus quase noventa anos, se encheu de vontade de estar presente na celebração e nós começamos a nos organizar para que isso se tornasse possível.
A Dona Linda só costuma sair de casa aos domingos, quando Mateus e eu nos despencamos até Niterói para levá-la em nosso carro para passear e, algumas vezes, caminhar um pouquinho. Fora isso, só visitas a médicos mesmo. Além dos agravantes normais da idade, ela é diabética e sempre que passa por momentos de forte emoção, desmaia, tem piripaque, é um problema.
Mas, mesmo com todos esses empecilhos, fizemos questão de levá-la até lá. Afinal de contas, toda a sua família estaria reunida nesse almoço de aniversário”.
Achei ruim começar assim... Muito didático, sem emoção.
Decidi fechar os olhos e tentar me lembrar que momento daquela festa me despertou para que eu realmente quisesse contar essa estória. Pronto, me lembrei...
Tínhamos acabado de chegar lá. Uma placa com os dizeres “Aniversário de 80 anos do Jorge” não nos deixava dúvidas de que estávamos no lugar certo. O ambiente era muito bonito e havia muitas flores espalhadas pelas mesas. O salão ficava no último andar de um prédio na Delfim Moreira e todo aquele mar do Leblon e de Ipanema parecia adentrar o local. As pessoas ainda se cumprimentavam, se abraçavam, se emocionavam depois de tanto tempo sem se ver.
Olhei ao redor e me dei conta de que não conhecia ninguém. Ninguém mesmo. Nem Mateus sabia direito quem aquelas pessoas eram. Mas, acompanhava sua avó e sua tia, que, com lágrimas nos olhos, pareciam não acreditar estarem diante de todos aqueles familiares que há tanto tempo não viam.
A música não podia ser melhor. Havia um saxofonista, com uma voz incrível, tocando e cantando clássicos do jazz: Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin, e por aí vai... Eu, encantada com todo aquele conjunto de acontecimentos à minha volta, retirei-me e fui para um cantinho da festa onde tornei a observar. Foi nesse momento que tive vontade de escrever. Vontade de passar através das palavras toda aquela energia boa que eu estava sentindo, falar sobre aqueles reencontros, sobre aqueles olhares, sobre aqueles sorrisos. Mateus me achou em meu cantinho e veio me abraçar:
-       Está tudo bem?
Lhe dei um forte abraço e agradeci. Ele agradeceu de volta e teve que sair para ajudar a Dona Linda a se ajeitar na mesa. Percebi que a Ana, tia do Mateus e filha da Dona Linda, havia se retirado do salão. Como notei que ela estava um pouco abalada, a segui:
-       Oi, Ana! Está gostando?
-       Aham...
-       Legal aqui, né?! Bonito...
-       É... É chato a gente se emocionar. Não gosto.
-       Por quê não?
-       Porque é triste.
-       É bom.
-       Não, não é.
-       É bom pegar aquilo que está guardado, fechado dentro da gente e trazer de volta ao mundo.
-       Mas, eu fico triste, porque eu olho todas aquelas pessoas que cresceram comigo e agora estão velhas, morrendo. Meus primos, por exemplo, a gente se perdeu. Éramos tão amigos, tão unidos, mas há anos nos afastamos sem perceber. Fomos parando de nos falar, fomos vivendo as nossas vidas com as nossas novas famílias e nos perdemos. Eu sinto tanta falta...
Ela chorou. Eu a abracei e fiquei pensando nos meus primos, na minha família... Em como crescemos unidos e ainda somos unidos. Lembrei do Chico, da Serena, do Bernardo, da Joana, do Zé e de todos os outros. Não posso deixar que nos percamos ao longo do caminho.
-       Ana, aproveita esse sentimento de agora, esse reencontro. A gente sabe que não dá pra voltar atrás, mas sempre dá pra recomeçar.
Depois dessas palavras, roubadas do Chico Xavier, ela voltou para a festa. E, eu, continuei de longe a observar.
Eram, mais ou menos, oitenta pessoas presentes, que se dividiam em quatro faixas etárias dominantes: umas vinte tinham mais de setenta anos, quarenta tinham entre cinqüenta e setenta, quinze tinham entre vinte e cinco e trinta e cinco e cinco tinham menos de cinco anos. Eram as quatro gerações da família: os pais, os filhos, os netos e os bisnetos.
Aos poucos, as pessoas vinham falar comigo. Afinal, quem era aquela menina que ninguém da família conhecia? Pois bem, no final, eu já era convocada até para as fotos do álbum de família. Quando gritaram: “Agora, os netos!”. Uma das filhas do Jorge veio até mim, me agarrou pelo braço e me levou até a posição da foto: “Você também é da gente!”. Achei incrível!
Antes do “Parabéns”, colocaram um vídeo que mostrava uma retrospectiva da vida do aniversariante. Desde como seus pais se conheceram, aonde moraram, os oito filhos que tiveram, o casamento do Jorge, os filhos que ele teve, depois os netos, os bisnetos, as bodas de ouro, os aniversários, as viagens, as formaturas dos filhos e netos... Era tanta felicidade que me deu uma vontade enorme de chegar aos oitenta. Foi aí que me lembrei dos oitenta anos do meu pai...
Eu havia preparado uma festa surpresa para comemorar a data. Seria em nossa casa, com nossos familiares e amigos, ao som de músicas do Sinatra, tocadas ao vivo por um grande amigo, intérprete do cantor. Além disso, eu havia feito um pequeno documentário sobre ele e havia gravado depoimentos das pessoas mais importantes que haviam passado pela sua vida. Contratei telão e tudo que tinha direito para passar a surpresa em grande estilo.
Meu pai já vinha reclamando, há algumas semanas, de dores nas costas e, quatro dias antes do seu aniversário, ele resolveu se internar para fazer alguns exames. Os resultados eram inconclusivos, os médicos falavam pouco. A demanda por novos exames aumentava e a nossa preocupação também. Na véspera de seu aniversário, tive que cancelar tudo. Ele não tinha previsão de alta. No dia seguinte, ao chegar no hospital, estranhei o burburinho de familiares na porta do quarto de meu pai:
-       O que houve? – perguntei a uma tia.
-       Você tem que ser forte. Seu pai está com câncer.
Bela notícia para inaugurar seus oitenta anos. Fiquei sem reação...
-       Ele já sabe?
Ela assentiu.
-       Ele está sozinho?
Ela assentiu de novo.
Entrei no seu quarto e caminhei até a cama. Ele repousava para o lado oposto. Apoiei minhas mãos sobre seu ombro e dei-lhe um beijo:
-       Flor?
-       Oi, pai. Feliz aniversário!
-       Obrigada, meu amor!
-       Olha: trouxe flores e o seu chocolate preferido!
-       Oba! Vamos comer?
Passei o dia todo ao lado dele. Vimos tv, comemos sorvete de pistache, fizemos planos para a minha faculdade de música – que eu prestaria vestibular em alguns meses – e cantamos algumas canções do Sinatra antes de dormir.
Os médicos me falaram que o câncer já estava bem avançado:
-       É um câncer no pulmão com metástase óssea. Seu pai tem apenas alguns meses de vida, minha querida. De qualquer maneira, vamos começar as sessões de quimioterapia amanhã.
Dois dias depois, ele estava em casa. Uma semana depois, metade dele estava casa... Foi impressionante o que a quimioterapia fez. Ele envelheceu vinte anos em sete dias. Já não andava mais direito, seus cabelos começavam a cair, sua voz era fraca, assim como todo o seu corpo. Lembro de olhar para ele e pensar: “Eu quero meu pai de volta. Aonde ele está?”.
Aquele homem era tudo pra mim. Era meu companheiro, meu exemplo, meu melhor amigo. Sempre morei com ele e, há mais de dez anos, éramos só nós dois dividindo a mesma casa – com Maria sempre conosco, claro! Dormíamos juntos, jantávamos juntos, dançávamos ao som de jazz. Eu tocava piano para ele todas as noites enquanto ele tomava uísque e dava pitacos: “Não foi tão bom dessa vez, engasgou naquela estrofe” ou “Perfeito, magnífico! Toca outra vez!”. E, de repente, nada mais daquilo existia. E o pior, nunca mais existiria.
Decidi fazer a festa de oitenta anos do meu pai de qualquer jeito. Seria uma forma de homenageá-lo antes de sua partida. Com a ajuda de Mateus, que já era meu namorado na época, reorganizamos tudo. Algumas horas antes da festa, fui até o quarto de meu pai e falei:
-       Coloca a sua roupa mais bonita!
-       Por quê?
-       Não pergunte por quê! Apenas faça isso por mim... Às oito horas virei buscá-lo.
Os familiares foram chegando, os amigos também. Em pouco minutos, a casa estava cheia para prestigiá-lo. Meu amigo cantor e a pianista já estavam a postos quando fiz sinal para que eles começassem a tocar. Ao som de “Fly me to the moon”, subi as escadas para buscar meu pai. Ele estava lindo! Com seu blazer azul marinho e suas abotoaduras de ouro, me esperava sentado em sua poltrona. Estendi os braços e disse: “Vamos?”.
Fomos descendo as escadas e quando as pessoas o viram, começaram a aplaudí-lo. Foi a primeira vez que o vi chorar. Segurei-o com mais força e conduzi-o até uma cadeira estrategicamente posicionada em frente ao telão. Ao fim da música, começou a primeira parte de depoimentos. Depois, mais músicas e mais depoimentos e, assim foi até todos estarem acabados de tanto chorar. Fiquei o tempo todo de mãos dadas com ele, fazendo carinho em suas mãos e ele nas minhas; trocando beijinhos e olhares.
Havia combinado com os músicos de terminar a homenagem com “My Way”, mas, ali na hora, achei melhor trocar por “New York, New York”. Seria melhor para todos. Eu, inclusive, não sei se agüentaria...
No final do vídeo e das canções, todos vieram falar com ele. Entre abraços, lágrimas e lembranças de uma vida inteira, as pessoas foram indo embora. O estado de saúde dele estava bem debilitado e ele precisava descansar.
Quando chegamos em seu quarto, ele me abraçou como nunca antes e disse:
-       Foi o dia mais feliz de toda a minha vida!
Engoli o choro.
-       Eu nunca tive uma festa como essa. Foi coisa de cinema! Eu me senti amado, adorado, celebrado! Muito obrigada, minha filha.
-       Você merece muito mais, meu pai...
Coloquei-o para dormir e quando ele já estava de olhos fechados, falou:
-       Faltou tocar “My Way”.
-       É, pois é...
-       Canta pra mim? Para eu dormir...
Tentei começar, mas não consegui. Chorei..
-       Não consigo, pai. Me desculpe.
-       Tudo bem. Outro dia você canta. Boa noite, minha flor.
Quatro meses depois daquele dia, meu pai se foi. Hoje, cinco anos depois, enquanto via todas aquelas fotos do Jorge passando no telão, tudo isso veio à minha cabeça. Ao fim do vídeo, o aniversariante gritou, estendendo os braços:
-       Yeah!!!!!!!!!
Foi de uma catarse tão grande aquele gesto que todos os familiares aplaudiram e gritaram também. Queria tanto que meu pai estivesse ali, nos seus oitenta anos, dando um berro daqueles, celebrando a vida e os anos que estão por vir. Mas, nossos caminhos são sempre diferentes, apesar de bem próximos. As atitudes dos outros nos levam a reflexões tão próprias, tão nossas, que fica, praticamente impossível, não estabelecer uma conexão. E foi em meio àqueles aplausos, àquela euforia, que eu me senti parte daquilo, daquelas pessoas, daquela história. De uma maneira ou de outra, nossas vidas haviam se cruzado. Num impulso, peguei coragem e fui até o microfone:
-       Olá! Boa tarde! Eu sei que maioria de vocês não me conhece, alguns me conheceram há pouco. Mas, é que ao ver essas fotos e ser apresentada a um pouco da história de vocês, eu pude perceber o quanto a minha história e a história da minha família também passa pela história de vocês. Assim como as histórias de todas as outras famílias também passam umas pelas outras. Uma vez, meu pai me pediu uma coisa que eu não consegui fazer e agora, ele não está mais aqui para que eu faça. É por isso que olhando para tantos pais que estão aqui e tantas filhas e filhos e futuros pais e mães, que eu peço permissão para cantar a música que o meu pai gostaria de ter ouvido há cinco anos atrás.
Fui até o ouvido do músico e cochichei a canção e o tom. Em poucos segundos, encarando aquela platéia que me olhava um tanto assustada, comecei:
“And now, the end is near
and so I face the final curtain
My friend, I’ll say it clear
I’ll state my case of which I’m certain
I’ve lived a life that’s full
I traveled each and every highway
And more, much more than this
I did it my way (...)”.
Fui corajosa até o fim e não hesitei por um segundo sequer. Ao final da música, todos aplaudiam de pé e em coro gritavam, levantando as mãos: “Yeah, yeah, yeah!!!”.
E, nesse momento, como ninguém é de ferro, agradeci, olhei para o céu e chorei...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A noite do despertar


 Embora meu aniversário tenha sido na semana passada, pareço permanecer no meu inferno astral. Os últimos meses têm sido conflituosos e surpreendentes e isso tem me tirado de meu centro seguro.
          Fico tentando achar os motivos para isso estar acontecendo, mas acabo percebendo que os minutos que gasto em divagações a respeito são totalmente inúteis; as respostas, simplesmente, não vêm... E, sendo assim, acabo me conformando com meu estado latente, monótono e chato.
         Parei de sorrir e de achar tanta graça nas coisas. Será que sou eu a causadora dessa mudança ou será que efetivamente o mundo se tornou entediante? Não fosse pelo fato de eu ter parado de me lembrar de minhas aventuras durante o sono, eu optaria pela segunda opção, mas, essa ausência responde perfeitamente à minha pergunta: a responsável sou eu.
       Bom, ter consciência disso seria um grande passo se eu habilmente conseguisse usá-lo a meu favor, mas, usar qualquer coisa a meu favor tem se mostrado impossível ultimamente. Tenho me agredido com pensamentos inoportunos, com ataques de histeria, com má-criação e impaciência com meus amores e com a diminuição da percepção do mundo à minha volta.
       Por diversas vezes, sentei para escrever, mas não passei do terceiro parágrafo, peguei meu livro de cabeceira, mas parei na segunda página, coloquei um filme para assistir, mas adormeci nos primeiros minutos.
Viver se torna muito complicado quando a gente não está a fim. As mesmas coisas se apresentam para nós de formas muito distintas e incrivelmente estranhas.
Nessas horas, a gente sempre acha que o problema é causado pelos outros: é o olho grande dos outros, a inveja dos outros, os maus pensamentos dos outros... Afinal de contas, a nossa vida é sempre a melhor, a mais bem quista, a que todos almejam ter; o nosso marido é o melhor do mundo, nós somos os mais bem sucedidos, mais bonitos, mais inteligentes, mais brilhantes! Quem não trocaria tudo para estar no nosso lugar?
Pois são esses pensamentos equivocados que fazem com que nos achemos muito importantes e tiram a responsabilidade de nossos fracassos de nós mesmos. Pensar que o mundo conspira contra você e que os outros provocam a sua infelicidade são chaves para o fracasso. Mas, apenas perceber isso não é suficiente para que a mudança aconteça. É necessário que algo penetre seu coração, que te tire desse cantinho confortável e inoperante e te jogue de volta à vida! E, isso, pode estar aonde você menos espera...
Eram quase três da manhã quando fui dar uma última olhada no meu feed de notícias do facebook. De cada dez posts, nove se referiam à morte de Steve Jobs. E, desses nove, cinco traziam consigo um discurso feito por ele para uma turma de formandos de uma universidade. Gastar quatorze minutos assistindo um vídeo não me pareceu uma boa idéia a cinco horas do meu despertador tocar. Mesmo assim, cliquei. Confesso que ouvir aquelas palavras, no mesmo dia da morte daquele homem, me estremeceram consideravelmente. Resolvi guardar muitas daquelas frases e repeti-las ao longo da vida, como um mantra. Ele me fez bem.
Desci mais um pouquinho o mouse e me deparei com um vídeo entitulado “X-Factor Australia - Emmanuel Kelly”. Acima, no próprio post, vinha a seguinte frase: “E tem gente que reclama da vida o tempo todo!”. Foi praticamente impossível resistir...
“X-Factor” é um programa caça-talentos, assim como “Britain's Got Talent” e “American Idol”. E Emmanuel Kelly é um rapaz (com um dos sorrisos mais lindos que já vi) que lá estava, na frente dos jurados, para sua primeira audição como cantor.
Antes de sua performance, o programa mostrou um pouco da história dele, que nasceu no Iraque e foi abandonado pelos pais, junto com seu irmão, num orfanato. Além de ambos serem deficientes físicos, não sabem nem ao certo quando nasceram e de onde vieram. Foram adotados por uma mulher australiana, ainda pequenos, que os criou com todo o amor e dedicação. O maior sonho de Emmanuel é se tornar um cantor profissional e, para isso, ele treina e estuda, incessantemente, todos os dias de sua vida. Chegava o momento de sua primeira apresentação e a música escolhida para a performance havia sido “Imagine”.
À essa altura do campeonato, o choro já estava preso na garganta. Tentei segurá-lo por mais um tempo a fim de não transparecer para Mateus, que vidrado na tela do computador, provavelmente, fazia o mesmo. Mas, bastaram as primeiras notas soadas por Emmanuel para o pranto vir absoluto. Meu peito, há meses fechado, abriu-se para o mundo; minha mente, um tanto obscura, clareou-se de possibilidades. Os caminhos se abriam novamente.
Pedi licença ao Mateus e tranquei-me no banheiro para chorar em paz. As lágrimas caíam numa velocidade alucinante e levavam com elas toda a tristeza interior, lavavam a minha alma. Minutos depois, as palavras começaram a vir e meus dedos, ligeiros, insistiram em teclar. Eu voltara a escrever. Já nem me preocupava com o fato de ter que acordar dali à poucas horas para trabalhar. Um baú de histórias, de idéias e sentimentos abriu-se à minha frente e a frase de uma das juradas, dita ao final da apresentação daquele rapaz, conduziu meu pensamento: “Isso nos faz pensar que tudo com que nos preocupamos é patético”.
E é mesmo! Percebi o quanto tenho sido despreocupada com as pessoas à minha volta,  o quanto tenho preferido a ascensão profissional em prol da saúde familiar, o quanto tenho sido egoísta em minhas ações, o quanto não tenho dado valor aos pequenos gestos de amor cotidianos e, por aí, vai...
Adormeci e o que eu imaginava aconteceu: consegui me conectar ao meu mundo de sonhos. Antes desses meses adormecidos no tempo, frequentei lugares bastante interessantes e, nessa noite, voltei a um dos mais especiais: a famosa “Hermana Cultural”.
Esse complexo contém áreas ligadas a todos os tipos de artes, desde a dança até a pintura, passando pela música, pela fotografia, pela literatura e tantas outras. Conectadas por modernas rotas circulares, é possível percorrer todas numa noite só. A quantidade de pessoas caminhando, estudando, trabalhando, criando e produzindo é tão grande que fica fácil acreditar porque a segunda maior região celestial é a das artes, só perdendo para a região da “Saúde e Caridade”. 
Desde o meu retorno aos céus, após minha um tanto fracassada vida passada, morei nos bairros do “Hermana”. O povo desse antro é muito alegre. É o meu povo. Sabe quando você chega num lugar e se sente bem sem nem saber porquê? Pois é, o “Hermana” é assim pra mim. É a minha casa.
           E, nada como retornar ao solo amado depois de um tempo adormecida na esfera terrena. O Luca e a Adélia me esperavam ansiosos. O Luca vocês já conhecem, mas é a primeira vez que falo da Adélia, uma amiga muito especial:
-       Querida Dé, quanto tempo! Que saudades desse sorriso!
-       Ai, Flor, estou tão feliz com a sua volta que fiz questão de vir te encontrar.
Luca, junto a ela, correu para me abraçar:
-       Parabéns!
-       Você não acha que está um pouco atrasado, não?!
-       Não estou dando os parabéns pelo seu aniversário e sim pela sua volta!
-       Ué, mas eu não estava vindo, porque você não me buscou mais...
Adélia interferiu:
-       Flora, querida, não fomos nós que esquecemos de você. Foi você que se fechou para a gente. Até tentamos te alertar do perigo, mas não teve jeito. Você acabou desviando seu foco e nós não conseguimos evitar o ataque.
-       Ataque? – perguntei, assustada.
-       Isso mesmo, um ataque – Luca acrescentou – Um grupo de maus elementos aproveitou essa brecha da sua atenção e sintonizou com a energia negativa que você havia canalizado. Começaram a fazer parte da sua rotina, a influenciar suas atitudes cotidianas, a atrapalhar sua relação com Mateus e a te colocar pra baixo.
-       Meu Deus! Como foi que eu não percebi isso?
-       Você é um forte alvo desse tipo de pessoas – disse Adélia – Eles costumam ficar esperando um vacilo como esse para se aproveitarem da situação. A sorte é que, além de você ter consciência do bem e do mal, você tem o Mateus.
-       Mas, por que vocês estão falando isso?
Adélia continuou:
-       Porque ele percebeu que você estava alterada e começou a combater todo esse mal enviando pensamentos de amor para você, diariamente. E, o que faltava, que era a sua percepção dessa alteração negativa e a conseqüente mudança para o bem, acabou sendo estimulada pelas histórias de amor e superação que você assistiu.
-        Elas abriram sua mente e seu coração – Luca finalizou.
Emocionada, quis logo voltar para minha cama e acordar meu marido com muitos beijos e abraços, mas eles ainda não tinham terminado:
-       Bom, mas vamos deixar isso para trás, porque, agora, finalmente, a gente vai poder te dar seu presente de aniversário. Pode contar, Luca.
Ansiosa, comecei a tremer na base...
-       Flor, lembra aquele pedido que você havia feito há algum tempo ao pessoal das gratificações.
-       Ah, não! Não me diga que eles concederam?
-       Parabéns! Você é a mais nova integrante da caravana pela paz!
Pulei, chorei, abracei os dois, gritei de felicidade! Eles também! Fazer parte dessa caravana é um sonho muito antigo, muito mesmo. O Mateus, assim como a Adélia e o Luca, já fazem parte do grupo há anos, mas eu não havia sido aceita na época, pois alegavam que eu deveria me concentrar apenas nos estudos e em questões familiares complicadas. Já estava até achando que isso não aconteceria mais, pois têm amigos meus que tentam há décadas e não conseguem entrar.
          O grupo sai todas as noites em busca de pessoas que estejam precisando de ajuda, orientando e influenciando a recuperação de muitos. Participar desse trabalho, além de ser muito gratificante, é o que há de melhor para o crescimento próprio. Afinal, é em face da infelicidade dos outros que conseguimos enxergar a nossa felicidade e é em contato com os problemas alheios que podemos resolver os nossos.
No meio do abraço, Adélia explicou:
-       A força com que você lutou contra o que estava lhe afligindo foi tão grande que provou que você está mais do que preparada para fazer parte da caravana.
-       E não acabou! – falou Luca – Você vai fazer parte do grupo do Mateus! 
-       Sério?!
-       Seríssimo! O pessoal disse que ter um casal com o amor que vocês têm, trabalhando juntos para bem, é a melhor coisa que pode existir para o trabalho ser bem sucedido!
-       E, por que vocês me trouxeram para o “Hermana”?
Adélia respondeu:
-       Porque a gente sabe que essa é a sua casa e, nada como estar em casa para receber uma notícia dessas!
-       Aonde está o Mateus agora? Ele está trabalhando? Eu posso acordá-lo para contar a novidade? – perguntei.
-       Vai lá e acorda ele com muitos beijos – falou Luca – A caravana voltará a atuar daqui a dois dias. Estaremos te esperando!
-       Parabéns, linda Flor!
Desci louca para encontrar meu marido e contar a novidade. Mal podia acreditar no que estava acontecendo!
-       Mateus, acorda, Mateus!
     Aos poucos, ele foi abrindo os olhos...
-       Oi, amor... Calma... O que foi?
-       Eu entrei na caravana! E no seu grupo! Eu consegui! Eu consegui!
Bem sonolento, ele abriu um sorriso enorme e disse:
-       Preparada para acordar cansada todos os dias?
-       Preparadíssima!
-       Então, seja bem vinda, meu anjo!
Adormecemos abraçados e cheios de felicidade, traçando planos para as próximas noites repletas de trabalho...
Acordei leve e renovada. A vida sorria. As pessoas pareciam mais bonitas. A inspiração vinha. As coisas pequenas se mostraram pequenas como são. As grandes estimularam minha sensibilidade. Afinal de contas, sou sensível e é, justamente, essa sensibilidade que me fortalece. O que me resta dizer a você é: “Seja também! Sonhe também!”.