domingo, 3 de julho de 2011

Traição


Meu sono era leve. Há mais de uma hora, eu rolava na cama de um lado para o outro e nada... O dia havia sido bastante cansativo, mas, apesar disso, não conseguia me desprender daqui e entrar naquele estágio de sono profundo. Comecei a ficar apreensiva, afinal, já devia passar da uma da manhã e eu acordaria dali a seis horas.
Decidi não abrir os olhos, pois essa ação fatalmente me levaria até o relógio e eu não merecia tamanha angústia. “Dorme! Dorme, vai!”. Detesto insônia! É horrível! “Vai, você vai conseguir! Basta fechar os olhos e relaxar... Ai, que droga! Nada... Bom, que tal pensar em coisas boas?” Parecia uma ótima idéia... Comecei a me lembrar de todas as viagens que já fiz com Mateus, todos os lugares que passamos juntos, as praias, as cachoeiras, os museus, os castelos, o dia em que pegamos o carro e partimos pela Toscana, a noite em que assistimos um coral de crianças na Saint Chapelle, o dia em que chegamos a Londres e desbravamos suas ruas e seus jardins, a noite em que fomos a Filarmônica de Berlim e choramos de mãos dadas, tomados de uma avassaladora emoção, o dia em que andamos pela praça de Praga e um homem tocava um Xilofone que soltava fogo... a música era engraçada, alta, muito alta, adentrava meus ouvidos agressivamente, tão agressivamente que chegava a doer... “Ai, para de tocar! Para! Para!”. Abri os olhos. Meu telefone aceso acabara de me tirar daquele transe. Eram duas e meia da manhã e o nome “Roberta” reluzia na tela do meu celular:
-       Beta? Que houve?
-        Acabou, Flora. Acabou...
-       Calma, amiga. O que aconteceu?
-       O Marcelo... ele...
Putz, já podia imaginar... Foi por isso que me seguraram por aqui esta noite e me impediram de subir. A missão estava apenas por começar...
-       ...ele me traiu! Eu descobri tudo! Acabou!
O que dizer numa hora dessas além de “calma, calma, calma...”? A essa altura, Mateus, acordado, começava a me indagar: “o que houve? O que houve? O que houve?”. Com raiva de todos os homens da face da Terra, eu gritei: “Nada!”. E saí do quarto com Beta aos prantos em meus ouvidos:
-       Flora, foi horrível...
-       Mas, como você descobriu?
-       Ele esqueceu a caixa de e-mail aberta e foi tomar banho. Aí, eu resolvi fuxicar e achei várias mensagens de uma tal de Aline lá do trabalho dele, dizendo como as tardes eram maravilhosas com ele, como o sexo era bom, o quanto ela estava ficando apaixonada, mas sabia que não podia, afinal ele é casado... e por aí vai... Amiga, eu tive vontade de vomitar!
-       Calma, Beta...
-       E o pior de tudo é que já faz muito tempo... Desde antes de a gente se casar, acredita? Ele se atirou no chão pedindo perdão, dizendo o quanto vivia sofrendo com isso, mas que ia mudar, que ia acabar tudo com essa Aline, que me amava mais que tudo nesse mundo, que eu era a mulher da vida dele... Patético...
-       Calma, Beta...
-       Doeu, Flor. Está doendo muito... Parece que eu não vou agüentar... É uma dor muito esquisita, porque, às vezes, ela vem misturada de uma compaixão, sabe? Fico querendo matá-lo e, ao mesmo tempo, pegá-lo no colo e dizer: “fica tranqüilo, vai ficar tudo bem...”. É como se no fundo eu quisesse que  tudo fosse um pesadelo... Como se não pudesse ser real isso que está acontecendo... A gente estava tão bem... Tão feliz...
-       Calma, Beta...
-       Eu sempre achei que isso só acontecia com os outros e que o Marcelo era diferente. Eu coloquei ele pra fora! Acabou! Acabou...
-       Você quer que eu vá ficar com você?
-       Não. EU quero ir ficar com você...
A Beta chegou aqui em casa parecendo um zumbi: os olhos inchados de tanto chorar, a voz fraca, o corpo murcho... Arrumei a cama pra ela e fiquei abraçando-a por longos segundos antes de apagar a luz. Fiz carinho na sua cabeça, dei muitos beijos em suas bochechas e fiz questão de dizer o quanto eu a amava e o quanto ela era especial. Eram quatro e meia da manhã e eu só tinha poucas horas para me recuperar.
Embarquei num transe profundo... Em poucos segundos, já me encontrava com Luca:
-       E aí? Como é que ela ficou?
-       Mal, né... Está sofrendo muito, coitada... A gente não pode levá-la até o Danilo?
-       É exatamente por isso que eu estou aqui.
O Danilo é um negro alto, forte e lindo. É uma das pessoas mais iluminadas que eu já vi (e, olha que minha lista não é pequena...). Seu coração é tão puro e sua energia positiva é tão intensa que ele, atualmente, cuida do “Campanário dos Corações”. O nome é brega assim mesmo, mas o lugar é incrível. Não tem árvores nem flores, nem crianças correndo, nem anjinhos tocando harpa. Também não é uma sala branca e vazia. É muito mais do que isso. É mágico! Toda a sua superfície é composta de água. Sim, água! E nós podemos andar livremente sobre ela. Todo o seu entorno é cercado de cachoeiras e o ar que respiramos lá é cheio de fluidos que fazem tudo brilhar. Conseguiram imaginar? Pois bem, o Danilo fica no centro de tudo isso. É ele quem cuida de todos os corações machucados dessa região.
Quantas vezes já chorei em seus braços e ele lavou minha alma e meu peito. Não há sequer uma pessoa (do nosso metro quadrado, claro!), que já não tenha sido cuidada por ele. Era a vez da Beta.
Conversamos com o Danilo, que, extremamente ocupado por tantos corações partidos, abriu uma brecha em sua “agenda” e aceitou começar o tratamento com ela na próxima noite. Nós a buscaríamos e a levaríamos de volta ao lar nos próximos noventa dias. Depois, em noites alternadas por mais três meses e, dependendo do resultado, uma vez por semana por mais seis meses. A manutenção se daria com uma visita mensal no segundo ano de tratamento. Só a partir do terceiro ano, seu coração poderia voltar a ficar mais tranqüilo. A cicatriz ficaria para sempre...
-       É por isso que lá embaixo a gente diz que só o tempo pode curar...
-       Flora, pelo menos, cura. Imagina se não tivéssemos o Danilo...
Preferi não imaginar... O trato estava feito e era hora de voltar pra cama.
Comecei a sonhar aquele sonho que vem um pouco antes de a gente acordar. Aquele sonho que é fruto da nossa imaginação, dos nossos medos, das nossas inseguranças...
Mateus e eu chegávamos a um bar. O local estava repleto de pessoas falando alto, gesticulando, rindo... Tudo era meio marrom, meio esquisito... Sentamos numa mesa. Aos poucos, foram chegando outras mulheres que, sem pudor, sentaram-se conosco. Cumprimentaram meu marido como se já o conhecessem. “Estranho”, pensei. “De aonde Mateus as conhece?”. Elas eram vulgares, trajavam lingeries sujas, velhas e rasgadas, mas não perdiam a pose. Fumavam em suas piteiras e bebiam uísque nacional.
Meu marido começava a ficar sem graça com toda aquela situação. Até que olhei para seus olhos e pude ver tudo: ele as conhecia intimamente, eram todas mulheres do prostíbulo que ele freqüentava. “Não, não era possível... Ele sempre disse que me amava, que não me trairia jamais, que nosso amor era mais forte que qualquer coisa... Não!”.
Saí, desolada, pelas ruas sujas e vazias. Ele, gritando e me implorando perdão, veio atrás. E, atrás dele, todas as outras mulheres também vinham. “Sai!”, eu gritava. “Some da minha vida!”. Ele chorava, chorava, chorava... Dizia que aquilo era diferente, começava com aquele discurso machista de que sexo não tem a ver com amor, que aquilo era só prazer, mas que amor mesmo era só por mim; que eu jamais entenderia isso, porque eu era mulher, e mulher não tem essa necessidade física, e continuava falando tudo aquilo que todos os homens falam para entupir nossos ouvidos...
Acordei num susto. Um aperto no peito... Olhei para o lado e lá estava ele dormindo... Senti raiva, nojo, tristeza... Todo o amor que eu tinha por aquele homem havia se transformado em decepção. Cheguei a conclusão de que se isso realmente acontecesse, eu deixaria de amá-lo. Não deixaria de amar o “meu Mateus”, mas, certamente, o “meu Mateus” não existiria, haveria sido fruto de uma construção sólida e madura. E, “aquele Mateus” que se descobria para mim, “aquele” desse pesadelo, eu não amaria por nada nesse mundo.
Tomei um banho bem quente ao som de “Pra que chorar, pra que sofrer se há sempre um novo sol em cada novo amanhecer...”. Precisava dessa injeção de ânimo para seguir meu dia. Afinal, além de um marido que eu voltaria a amar em alguns instantes (precisava só dar mais um tempinho para meu cérebro entender que aquilo havia sido um pesadelo), eu ainda tinha uma amiga, sofrendo no quarto ao lado por uma estória disfarçada de amor verdadeiro...