sábado, 3 de dezembro de 2011

Solidão


Eu não podia acreditar que a Juno havia feito xixi bem no meio da sala – pelo tamanho da desgraça, só podia ter sido ela. Dei meia volta e corri em sua direção, peguei-a com a força de meus dois braços e corri para esfregar seu focinho naquele chão. Apavorada, ela começou a chorar e correu para se esconder embaixo da mesa. Lila me olhava desconfiada; tão desconfiada que resolveu seguir os mesmos passos da irmã. “Coitada da Juno...”, devia estar pensando.
-       Coitada nada! – falei – Ela não sabe que não pode fazer isso?
Passei por cima do estrago e me dirigi à área de serviço e... o que é que é isso? Que sensação de molhado... Ah não!
-       Lilaaaaaaaa!!!! Foi por isso que você se escondeu também, né? Vem aqui que eu vou te mostrar aonde é que se faz uma coisa dessas!!! Assim não é possível! Eu vou dar vocês duas, é isso que eu vou fazer! Pra mim chega!
Continuei falando e reclamando enquanto limpava aquela sujeira toda. A raiva aumentava cada vez que eu passava por elas e as via encolhidas me encarando assustadas. Por um momento, até acreditei que tudo aquilo que eu estava falando era verdade mesmo, mas, foi só olhar para elas abanando o rabinho alguns minutos depois para perceber que tudo não passava de um blefe...
É certo que eu chegara em casa cansada e ignorara solenemente suas boas vindas. Mas, nem um carinho? Nem uma atenção? Exatamente. Nem um carinho, nem uma atenção. Adentrei o recinto, fingi que não existiam – mesmo com aqueles dois seres pulando freneticamente ao meu redor – e fui tomar um banho. O que um ser vivo não é capaz de fazer para chamar atenção... Eu mesma estava doida para que Mateus chegasse. O dia havia sido cheio de novidades e eu precisava contar à ele tim-tim por tim-tim o que havia acontecido. Barulho de chave na porta... Oba! Ele chegou!
-       Oi, meu lindo! – corri para recebê-lo – Quanta saudade! Ainda bem que você chegou! – dei muitos, muitos beijos...
-       Estou morto... Vou tomar um banho.
“Só isso? Era só isso que ele tinha para me dizer depois de um dia inteiro sem a minha companhia?”. Bom, o jeito era esperar ele voltar do banho...
Em menos de cinco minutos ele já estava deitado ao meu lado. Entre alguns beijinhos – meus, apenas meus –, puxei conversa:
-       Como foi seu dia? Alguma novidade?
-       Não, nada de mais.
-       Sei... O meu foi ótimo! Aconteceu tanta coisa...
-       Que bom...
-       É, bom mesmo! Sabe aquela conversa que eu tive com o Fernando? Então, deu certo! Ele vai fazer o que eu sugeri e tem muitas chances do meu projeto acontecer. A Carla, sabe a Carla? Então, ela também adorou! Disse que está dentro com certeza e está empolgadíssima pra... Amor?
Dormiu. Exatamente: ele havia dormido enquanto eu contava uma coisa muito importante. Talvez, a mais importante do ano! Respirei fundo e cheguei à conclusão de que fazer xixi no meio da sala não seria uma boa idéia. Fechei a janela, liguei o ar condicionado, cobri-o com o lençol, apaguei as luzes e dei-lhe um beijo de boa noite:
-       Desculpe, meu anjo – ele sussurrou – Não consegui ficar com os olhos abertos...
-       Não tem problema, amanhã conversamos. Durma bem. Te amo.
Saí do quarto e fui ver que horas eram: nove e meia da noite! De uma sexta-feira ainda por cima! O que fazer agora, já que meus olhos nem manifestavam sinais de fraqueza? Ai, por que eu não aceitei o convite da Beta para ir ao cinema? “Poxa, amiga, hoje não vai dar... Deixa pra semana que vem!”. Ou então o do Michel e da Lena para sair pra jantar? “É, não vai rolar... Estou super cansada e morrendo de saudades do Mateus. Quem sabe amanhã?”. Amanhã nada! Só me interessava o agora!
Parei por um instante a fim de encarar as minhas possibilidades: além do computador, eu tinha mais ou menos uns trezentos livros divididos em oito caixas de mudança, trinta DVDs espalhados no armário da sala, uma infinidade de filmes na TV, um violão, um piano com inúmeras partituras para serem passadas a limpo, meus livros de francês com deveres de casa devidos e pelo menos uns quatro armários clamando por arrumação. Além de duas revistas ainda ensacadas, quatro edições incompletas de palavras cruzadas, uma caixa de bombons turcos, unhas por serem feitas e um monte de contas a pagar na internet. Mas, nada, nada disso me apetecia. Eu queria o meu marido. E, mais do que isso: eu queria atenção!
Pois é, justamente eu que sou super a favor da solidão controlada, de passar momentos divagando com meus pensamentos, de observar, só, o mundo à minha volta. Levanto a bandeira do “antes só do que mal acompanhado” e brigo pela individualidade cotidiana: no cinema, nos almoços, nos cafés, nos jantares, nos shoppings, nos parques e livrarias, nas viagens e nas andanças, pois, para mim, não há, nesse mundo, melhor companhia do que a própria.
Chamei minhas cachorrinhas. Elas vieram na hora. “Como são mais evoluídos do que nós!”, pensei. Em seus lugares, depois do que fiz, não iria jamais... Fiquei brincando com elas por um tempo, mas não o suficiente para sanar minha carência.
Pensei, pensei e, dentre todo o leque de opções, resolvi ler um livro. Os dois que se encontravam na minha cabeceira não eram suficientes para aquele momento. Precisava de algo novo. Mas qual?
A aula de história da arte que assistira ontem sobre Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, ou, simplesmente, Pablo Picasso – também fiquei espantada quando descobri essa quantidade de palavras em um único nome – me fez lembrar que eu comprara em Londres um livro da biografia do artista. Precisava encontrá-lo.
E, como a Lei de Murphy sempre atua, é claro que ele se encontrava na oitava caixa! Ao vê-lo, uma onda de alegria tomou conta de mim: encontrara minha companhia de sexta-feira à noite!
Como com todo livro estreiante, comecei meu ritual: primeiro senti-o em minhas mãos, depois cheirei suas folhas novas, li suas capa e contra-capa, sua introdução e, só então, adentrei o primeiro capítulo. E, foi justamente lá que encontrei um tesouro: um bilhete que Mateus escrevera quando brigamos por causa de... (pausa). A estória é longa. É melhor começar do começo...
-       Burrrrrrro! – gritou, o espanhol.
Mateus parou por um instante a fim de tentar entender se aquela palavra tinha sido dirigida a ele. Sim.
Ele deu meia volta e, bufando, voou até o rapaz, saudando-o com um belo supetão nas costas e um puxão na camisa:
-       Falou comigo?
-       Perdón? – se virou o rapaz, assustado.
-       Eu perguntei se você falou comigo?
-       No, no! Yo no he dicho nada! – finalizou, mais assustado ainda e partiu.
Mateus ficou encarando-o. As sobrancelhas cerradas não escondiam o ódio que jorrava de seu olhar. Ficou parado por segundos que pareceram uma eternidade. Quando despertou, eu já estava longe, bem longe...
Isso aconteceu na saída do metrô de Covent Garden, em Londres, quando estávamos indo comprar ingressos para assistir “O Lago dos Cisnes”, no Royal Ballet. O jovem mal educado pertencia a um grupo de espanhóis que conversava, alheio ao tumulto da hora do rush, praticamente grudado nas roletas da estação. Mateus, ao tentar desviar dos rapazes acabou esbarrando num deles, que sem cerimônia lançou o adjetivo. O que eles não esperavam era que a palavra havia sido dirigida a um brasileiro, que sabia perfeitamente o seu significado. O que eles esperavam menos ainda era que esse sul-americano fosse tirar satisfação de forma tão delicada. Acuados e surpresos, não reagiram. Sorte.
Eu fechei a cara. Por mais que achasse errada a atitude daquele jovem, não podia admitir que Mateus se descontrolasse de tal maneira. De que adiantaria fazer aquilo? E se o grupo tivesse se invocado de verdade e partido para cima dele? A nossa viagem, que apenas começava, poderia ter tido um desfecho trágico...
Tremendo da cabeça aos pés, corri para a bilheteria do teatro. Sem consultá-lo, comprei os ingressos bem longe um do outro. Precisava ficar distante por um tempo. O que eu não imaginava era que esse tempo seria longo demais...
O espetáculo foi incrível. Eu realizara um dos sonhos da minha vida. Por algumas horas, pareci entrar num transe. Um transe bom, muito bom. Uma viagem solitária, cheia de lembranças da minha época como bailarina, com todas aquelas cobranças, todos aqueles sonhos que não se realizaram... Mateus não apareceu nem como figurante em todas essas recordações. Esqueci até aonde estava, com quem estava, por que estava... Fechei-me num mundo inteiramente meu.
Quando as luzes se acenderam, segui sozinha para o hotel. Mateus veio atrás. Lembro que ele sussurrava umas coisas, tentava estabelecer uma conexão comigo, mas, eu estava fechada para qualquer ser que não eu mesma. A atitude imatura do meu marido aliada a viagem magnífica proporcionada por aquela obra de arte havia contribuído significativamente para que eu “bodeasse” do meu homem e desejasse a solidão.
Dormi como um anjo. Acordei bem cedo e parti, deixando Mateus roncando no quarto do hotel. Andei pelas ruas de Londres como uma criança que descobre um brinquedo novo. Entrei em galerias e cafés até avistar meu lugar preferido: a “National Gallery”.
Tomada de extrema felicidade, decidi desbravar aquele museu. Perdi a conta de quantos quadros me entorpeceram. Assisti pequenas palestras sobre Rafael e Cézanne, sentei com grupos escolares para ouvir explicações sobre quadros de Da Vinci e de Monet, tremi quando dei de cara com um Vermeer e chorei ao me deparar com “Marte e Vênus” de Botticelli.
Olhei para o relógio e levei um susto ao constatar que já era tarde. As oito horas que havia percorrido aquelas salas passaram voando. Lembrei de Mateus. Peguei o celular e lá estavam marcadas as quatorze ligações não atendidas. A última delas havia sido há mais de quatro horas atrás. Será que ele desistira de mim? Achei melhor dar um sinal de vida, afinal, estávamos viajando e, obviamente, viagens a dois não são feitas para serem a um.
Ao mesmo tempo que curtia aquela solidão toda, bem longe de casa, começava a sentir falta do meu companheiro. Escrevi: “Estou no melhor lugar do mundo...” e enviei. Saí do museu e fiquei esperando na escadaria. Nada... Nem um sinal de Mateus... Uma enxurrada de gente caminhava de um lado para outro, pediam para que eu tirasse fotos deles, falavam e riam alto, corriam para chegar à estação, mas o meu marido, nada. Nenhum sinal de vida. A certeza de que ele sabia exatamente qual é o melhor lugar do mundo para mim, me tranqüilizava; ele haveria de aparecer.
Oitenta e seis minutos. Foi esse o tempo mais longo de toda a minha vida. Foi esse o tempo que demorou para que um beijo por trás da nuca me despertasse dessa agonia. Contribuí com outro, na boca, em plena Trafalgar Square. Ele me estendeu a mão, eu lhe dei a minha. Ele me estendeu a outra mão e, quando eu ia estender a minha, percebi que um pequeno papel, cheio de passarinhos pintados, estava preso à sua palma. Levei-a até meus olhos. Nele, estava escrito: “Toda a solidão é necessária por tempo determinado. Vamos?”.
Seguimos em silêncio até o metrô. Ao som de “Night and Day”, tocada por um saxofonista indiano, olhei para meu homem e perguntei: “Pra onde?”. 
Aquela noite foi uma das melhores das nossas vidas. Curtimos tanto um ao outro... Estávamos felizes, completos. O incidente da noite anterior havia se diluído sem brigas, sem ressentimentos.  Ah, o tempo! Nada como o tempo! O nosso tempo!
         Agora, numa noite morna de sexta-feira, depois de escrever-lhes e tendo o tal bilhete em minhas mãos, resolvo voltar para a cama e abraçar meu homem, certa de que é chegado ao fim o tempo dessa minha solidão, hoje, importunada.

sábado, 22 de outubro de 2011

Última homenagem


Nunca sei muito bem como começar a escrever um texto. Costumo ficar alguns minutos parada, encarando a tela do computador e pensando, pensando, pensando... As palavras que forem escolhidas por mim irão eternizar um momento, um pensamento e ficarão marcadas exatamente daquela única maneira para sempre. Quando me dou conta disso, quase desisto. São tantas as formas de se contar uma mesma estória que para uma pessoa, indecisa como eu, isso é desencorajador. Mas, entre escolher aquela única maneira de contar ou não contar eu, quase sempre, opto pela primeira opção.
Mesmo depois de escrever esse primeiro parágrafo e achar que ele seria perfeito para me fazer embalar no que quero lhes contar, me vejo agora parada novamente, encarando a tela do computador. Como é difícil...
Pensei em começar assim:
“Há um mês atrás, a avó de Mateus recebeu o convite do aniversário de oitenta anos de seu irmão mais novo. Ela, um tanto debilitada nos seus quase noventa anos, se encheu de vontade de estar presente na celebração e nós começamos a nos organizar para que isso se tornasse possível.
A Dona Linda só costuma sair de casa aos domingos, quando Mateus e eu nos despencamos até Niterói para levá-la em nosso carro para passear e, algumas vezes, caminhar um pouquinho. Fora isso, só visitas a médicos mesmo. Além dos agravantes normais da idade, ela é diabética e sempre que passa por momentos de forte emoção, desmaia, tem piripaque, é um problema.
Mas, mesmo com todos esses empecilhos, fizemos questão de levá-la até lá. Afinal de contas, toda a sua família estaria reunida nesse almoço de aniversário”.
Achei ruim começar assim... Muito didático, sem emoção.
Decidi fechar os olhos e tentar me lembrar que momento daquela festa me despertou para que eu realmente quisesse contar essa estória. Pronto, me lembrei...
Tínhamos acabado de chegar lá. Uma placa com os dizeres “Aniversário de 80 anos do Jorge” não nos deixava dúvidas de que estávamos no lugar certo. O ambiente era muito bonito e havia muitas flores espalhadas pelas mesas. O salão ficava no último andar de um prédio na Delfim Moreira e todo aquele mar do Leblon e de Ipanema parecia adentrar o local. As pessoas ainda se cumprimentavam, se abraçavam, se emocionavam depois de tanto tempo sem se ver.
Olhei ao redor e me dei conta de que não conhecia ninguém. Ninguém mesmo. Nem Mateus sabia direito quem aquelas pessoas eram. Mas, acompanhava sua avó e sua tia, que, com lágrimas nos olhos, pareciam não acreditar estarem diante de todos aqueles familiares que há tanto tempo não viam.
A música não podia ser melhor. Havia um saxofonista, com uma voz incrível, tocando e cantando clássicos do jazz: Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin, e por aí vai... Eu, encantada com todo aquele conjunto de acontecimentos à minha volta, retirei-me e fui para um cantinho da festa onde tornei a observar. Foi nesse momento que tive vontade de escrever. Vontade de passar através das palavras toda aquela energia boa que eu estava sentindo, falar sobre aqueles reencontros, sobre aqueles olhares, sobre aqueles sorrisos. Mateus me achou em meu cantinho e veio me abraçar:
-       Está tudo bem?
Lhe dei um forte abraço e agradeci. Ele agradeceu de volta e teve que sair para ajudar a Dona Linda a se ajeitar na mesa. Percebi que a Ana, tia do Mateus e filha da Dona Linda, havia se retirado do salão. Como notei que ela estava um pouco abalada, a segui:
-       Oi, Ana! Está gostando?
-       Aham...
-       Legal aqui, né?! Bonito...
-       É... É chato a gente se emocionar. Não gosto.
-       Por quê não?
-       Porque é triste.
-       É bom.
-       Não, não é.
-       É bom pegar aquilo que está guardado, fechado dentro da gente e trazer de volta ao mundo.
-       Mas, eu fico triste, porque eu olho todas aquelas pessoas que cresceram comigo e agora estão velhas, morrendo. Meus primos, por exemplo, a gente se perdeu. Éramos tão amigos, tão unidos, mas há anos nos afastamos sem perceber. Fomos parando de nos falar, fomos vivendo as nossas vidas com as nossas novas famílias e nos perdemos. Eu sinto tanta falta...
Ela chorou. Eu a abracei e fiquei pensando nos meus primos, na minha família... Em como crescemos unidos e ainda somos unidos. Lembrei do Chico, da Serena, do Bernardo, da Joana, do Zé e de todos os outros. Não posso deixar que nos percamos ao longo do caminho.
-       Ana, aproveita esse sentimento de agora, esse reencontro. A gente sabe que não dá pra voltar atrás, mas sempre dá pra recomeçar.
Depois dessas palavras, roubadas do Chico Xavier, ela voltou para a festa. E, eu, continuei de longe a observar.
Eram, mais ou menos, oitenta pessoas presentes, que se dividiam em quatro faixas etárias dominantes: umas vinte tinham mais de setenta anos, quarenta tinham entre cinqüenta e setenta, quinze tinham entre vinte e cinco e trinta e cinco e cinco tinham menos de cinco anos. Eram as quatro gerações da família: os pais, os filhos, os netos e os bisnetos.
Aos poucos, as pessoas vinham falar comigo. Afinal, quem era aquela menina que ninguém da família conhecia? Pois bem, no final, eu já era convocada até para as fotos do álbum de família. Quando gritaram: “Agora, os netos!”. Uma das filhas do Jorge veio até mim, me agarrou pelo braço e me levou até a posição da foto: “Você também é da gente!”. Achei incrível!
Antes do “Parabéns”, colocaram um vídeo que mostrava uma retrospectiva da vida do aniversariante. Desde como seus pais se conheceram, aonde moraram, os oito filhos que tiveram, o casamento do Jorge, os filhos que ele teve, depois os netos, os bisnetos, as bodas de ouro, os aniversários, as viagens, as formaturas dos filhos e netos... Era tanta felicidade que me deu uma vontade enorme de chegar aos oitenta. Foi aí que me lembrei dos oitenta anos do meu pai...
Eu havia preparado uma festa surpresa para comemorar a data. Seria em nossa casa, com nossos familiares e amigos, ao som de músicas do Sinatra, tocadas ao vivo por um grande amigo, intérprete do cantor. Além disso, eu havia feito um pequeno documentário sobre ele e havia gravado depoimentos das pessoas mais importantes que haviam passado pela sua vida. Contratei telão e tudo que tinha direito para passar a surpresa em grande estilo.
Meu pai já vinha reclamando, há algumas semanas, de dores nas costas e, quatro dias antes do seu aniversário, ele resolveu se internar para fazer alguns exames. Os resultados eram inconclusivos, os médicos falavam pouco. A demanda por novos exames aumentava e a nossa preocupação também. Na véspera de seu aniversário, tive que cancelar tudo. Ele não tinha previsão de alta. No dia seguinte, ao chegar no hospital, estranhei o burburinho de familiares na porta do quarto de meu pai:
-       O que houve? – perguntei a uma tia.
-       Você tem que ser forte. Seu pai está com câncer.
Bela notícia para inaugurar seus oitenta anos. Fiquei sem reação...
-       Ele já sabe?
Ela assentiu.
-       Ele está sozinho?
Ela assentiu de novo.
Entrei no seu quarto e caminhei até a cama. Ele repousava para o lado oposto. Apoiei minhas mãos sobre seu ombro e dei-lhe um beijo:
-       Flor?
-       Oi, pai. Feliz aniversário!
-       Obrigada, meu amor!
-       Olha: trouxe flores e o seu chocolate preferido!
-       Oba! Vamos comer?
Passei o dia todo ao lado dele. Vimos tv, comemos sorvete de pistache, fizemos planos para a minha faculdade de música – que eu prestaria vestibular em alguns meses – e cantamos algumas canções do Sinatra antes de dormir.
Os médicos me falaram que o câncer já estava bem avançado:
-       É um câncer no pulmão com metástase óssea. Seu pai tem apenas alguns meses de vida, minha querida. De qualquer maneira, vamos começar as sessões de quimioterapia amanhã.
Dois dias depois, ele estava em casa. Uma semana depois, metade dele estava casa... Foi impressionante o que a quimioterapia fez. Ele envelheceu vinte anos em sete dias. Já não andava mais direito, seus cabelos começavam a cair, sua voz era fraca, assim como todo o seu corpo. Lembro de olhar para ele e pensar: “Eu quero meu pai de volta. Aonde ele está?”.
Aquele homem era tudo pra mim. Era meu companheiro, meu exemplo, meu melhor amigo. Sempre morei com ele e, há mais de dez anos, éramos só nós dois dividindo a mesma casa – com Maria sempre conosco, claro! Dormíamos juntos, jantávamos juntos, dançávamos ao som de jazz. Eu tocava piano para ele todas as noites enquanto ele tomava uísque e dava pitacos: “Não foi tão bom dessa vez, engasgou naquela estrofe” ou “Perfeito, magnífico! Toca outra vez!”. E, de repente, nada mais daquilo existia. E o pior, nunca mais existiria.
Decidi fazer a festa de oitenta anos do meu pai de qualquer jeito. Seria uma forma de homenageá-lo antes de sua partida. Com a ajuda de Mateus, que já era meu namorado na época, reorganizamos tudo. Algumas horas antes da festa, fui até o quarto de meu pai e falei:
-       Coloca a sua roupa mais bonita!
-       Por quê?
-       Não pergunte por quê! Apenas faça isso por mim... Às oito horas virei buscá-lo.
Os familiares foram chegando, os amigos também. Em pouco minutos, a casa estava cheia para prestigiá-lo. Meu amigo cantor e a pianista já estavam a postos quando fiz sinal para que eles começassem a tocar. Ao som de “Fly me to the moon”, subi as escadas para buscar meu pai. Ele estava lindo! Com seu blazer azul marinho e suas abotoaduras de ouro, me esperava sentado em sua poltrona. Estendi os braços e disse: “Vamos?”.
Fomos descendo as escadas e quando as pessoas o viram, começaram a aplaudí-lo. Foi a primeira vez que o vi chorar. Segurei-o com mais força e conduzi-o até uma cadeira estrategicamente posicionada em frente ao telão. Ao fim da música, começou a primeira parte de depoimentos. Depois, mais músicas e mais depoimentos e, assim foi até todos estarem acabados de tanto chorar. Fiquei o tempo todo de mãos dadas com ele, fazendo carinho em suas mãos e ele nas minhas; trocando beijinhos e olhares.
Havia combinado com os músicos de terminar a homenagem com “My Way”, mas, ali na hora, achei melhor trocar por “New York, New York”. Seria melhor para todos. Eu, inclusive, não sei se agüentaria...
No final do vídeo e das canções, todos vieram falar com ele. Entre abraços, lágrimas e lembranças de uma vida inteira, as pessoas foram indo embora. O estado de saúde dele estava bem debilitado e ele precisava descansar.
Quando chegamos em seu quarto, ele me abraçou como nunca antes e disse:
-       Foi o dia mais feliz de toda a minha vida!
Engoli o choro.
-       Eu nunca tive uma festa como essa. Foi coisa de cinema! Eu me senti amado, adorado, celebrado! Muito obrigada, minha filha.
-       Você merece muito mais, meu pai...
Coloquei-o para dormir e quando ele já estava de olhos fechados, falou:
-       Faltou tocar “My Way”.
-       É, pois é...
-       Canta pra mim? Para eu dormir...
Tentei começar, mas não consegui. Chorei..
-       Não consigo, pai. Me desculpe.
-       Tudo bem. Outro dia você canta. Boa noite, minha flor.
Quatro meses depois daquele dia, meu pai se foi. Hoje, cinco anos depois, enquanto via todas aquelas fotos do Jorge passando no telão, tudo isso veio à minha cabeça. Ao fim do vídeo, o aniversariante gritou, estendendo os braços:
-       Yeah!!!!!!!!!
Foi de uma catarse tão grande aquele gesto que todos os familiares aplaudiram e gritaram também. Queria tanto que meu pai estivesse ali, nos seus oitenta anos, dando um berro daqueles, celebrando a vida e os anos que estão por vir. Mas, nossos caminhos são sempre diferentes, apesar de bem próximos. As atitudes dos outros nos levam a reflexões tão próprias, tão nossas, que fica, praticamente impossível, não estabelecer uma conexão. E foi em meio àqueles aplausos, àquela euforia, que eu me senti parte daquilo, daquelas pessoas, daquela história. De uma maneira ou de outra, nossas vidas haviam se cruzado. Num impulso, peguei coragem e fui até o microfone:
-       Olá! Boa tarde! Eu sei que maioria de vocês não me conhece, alguns me conheceram há pouco. Mas, é que ao ver essas fotos e ser apresentada a um pouco da história de vocês, eu pude perceber o quanto a minha história e a história da minha família também passa pela história de vocês. Assim como as histórias de todas as outras famílias também passam umas pelas outras. Uma vez, meu pai me pediu uma coisa que eu não consegui fazer e agora, ele não está mais aqui para que eu faça. É por isso que olhando para tantos pais que estão aqui e tantas filhas e filhos e futuros pais e mães, que eu peço permissão para cantar a música que o meu pai gostaria de ter ouvido há cinco anos atrás.
Fui até o ouvido do músico e cochichei a canção e o tom. Em poucos segundos, encarando aquela platéia que me olhava um tanto assustada, comecei:
“And now, the end is near
and so I face the final curtain
My friend, I’ll say it clear
I’ll state my case of which I’m certain
I’ve lived a life that’s full
I traveled each and every highway
And more, much more than this
I did it my way (...)”.
Fui corajosa até o fim e não hesitei por um segundo sequer. Ao final da música, todos aplaudiam de pé e em coro gritavam, levantando as mãos: “Yeah, yeah, yeah!!!”.
E, nesse momento, como ninguém é de ferro, agradeci, olhei para o céu e chorei...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A noite do despertar


 Embora meu aniversário tenha sido na semana passada, pareço permanecer no meu inferno astral. Os últimos meses têm sido conflituosos e surpreendentes e isso tem me tirado de meu centro seguro.
          Fico tentando achar os motivos para isso estar acontecendo, mas acabo percebendo que os minutos que gasto em divagações a respeito são totalmente inúteis; as respostas, simplesmente, não vêm... E, sendo assim, acabo me conformando com meu estado latente, monótono e chato.
         Parei de sorrir e de achar tanta graça nas coisas. Será que sou eu a causadora dessa mudança ou será que efetivamente o mundo se tornou entediante? Não fosse pelo fato de eu ter parado de me lembrar de minhas aventuras durante o sono, eu optaria pela segunda opção, mas, essa ausência responde perfeitamente à minha pergunta: a responsável sou eu.
       Bom, ter consciência disso seria um grande passo se eu habilmente conseguisse usá-lo a meu favor, mas, usar qualquer coisa a meu favor tem se mostrado impossível ultimamente. Tenho me agredido com pensamentos inoportunos, com ataques de histeria, com má-criação e impaciência com meus amores e com a diminuição da percepção do mundo à minha volta.
       Por diversas vezes, sentei para escrever, mas não passei do terceiro parágrafo, peguei meu livro de cabeceira, mas parei na segunda página, coloquei um filme para assistir, mas adormeci nos primeiros minutos.
Viver se torna muito complicado quando a gente não está a fim. As mesmas coisas se apresentam para nós de formas muito distintas e incrivelmente estranhas.
Nessas horas, a gente sempre acha que o problema é causado pelos outros: é o olho grande dos outros, a inveja dos outros, os maus pensamentos dos outros... Afinal de contas, a nossa vida é sempre a melhor, a mais bem quista, a que todos almejam ter; o nosso marido é o melhor do mundo, nós somos os mais bem sucedidos, mais bonitos, mais inteligentes, mais brilhantes! Quem não trocaria tudo para estar no nosso lugar?
Pois são esses pensamentos equivocados que fazem com que nos achemos muito importantes e tiram a responsabilidade de nossos fracassos de nós mesmos. Pensar que o mundo conspira contra você e que os outros provocam a sua infelicidade são chaves para o fracasso. Mas, apenas perceber isso não é suficiente para que a mudança aconteça. É necessário que algo penetre seu coração, que te tire desse cantinho confortável e inoperante e te jogue de volta à vida! E, isso, pode estar aonde você menos espera...
Eram quase três da manhã quando fui dar uma última olhada no meu feed de notícias do facebook. De cada dez posts, nove se referiam à morte de Steve Jobs. E, desses nove, cinco traziam consigo um discurso feito por ele para uma turma de formandos de uma universidade. Gastar quatorze minutos assistindo um vídeo não me pareceu uma boa idéia a cinco horas do meu despertador tocar. Mesmo assim, cliquei. Confesso que ouvir aquelas palavras, no mesmo dia da morte daquele homem, me estremeceram consideravelmente. Resolvi guardar muitas daquelas frases e repeti-las ao longo da vida, como um mantra. Ele me fez bem.
Desci mais um pouquinho o mouse e me deparei com um vídeo entitulado “X-Factor Australia - Emmanuel Kelly”. Acima, no próprio post, vinha a seguinte frase: “E tem gente que reclama da vida o tempo todo!”. Foi praticamente impossível resistir...
“X-Factor” é um programa caça-talentos, assim como “Britain's Got Talent” e “American Idol”. E Emmanuel Kelly é um rapaz (com um dos sorrisos mais lindos que já vi) que lá estava, na frente dos jurados, para sua primeira audição como cantor.
Antes de sua performance, o programa mostrou um pouco da história dele, que nasceu no Iraque e foi abandonado pelos pais, junto com seu irmão, num orfanato. Além de ambos serem deficientes físicos, não sabem nem ao certo quando nasceram e de onde vieram. Foram adotados por uma mulher australiana, ainda pequenos, que os criou com todo o amor e dedicação. O maior sonho de Emmanuel é se tornar um cantor profissional e, para isso, ele treina e estuda, incessantemente, todos os dias de sua vida. Chegava o momento de sua primeira apresentação e a música escolhida para a performance havia sido “Imagine”.
À essa altura do campeonato, o choro já estava preso na garganta. Tentei segurá-lo por mais um tempo a fim de não transparecer para Mateus, que vidrado na tela do computador, provavelmente, fazia o mesmo. Mas, bastaram as primeiras notas soadas por Emmanuel para o pranto vir absoluto. Meu peito, há meses fechado, abriu-se para o mundo; minha mente, um tanto obscura, clareou-se de possibilidades. Os caminhos se abriam novamente.
Pedi licença ao Mateus e tranquei-me no banheiro para chorar em paz. As lágrimas caíam numa velocidade alucinante e levavam com elas toda a tristeza interior, lavavam a minha alma. Minutos depois, as palavras começaram a vir e meus dedos, ligeiros, insistiram em teclar. Eu voltara a escrever. Já nem me preocupava com o fato de ter que acordar dali à poucas horas para trabalhar. Um baú de histórias, de idéias e sentimentos abriu-se à minha frente e a frase de uma das juradas, dita ao final da apresentação daquele rapaz, conduziu meu pensamento: “Isso nos faz pensar que tudo com que nos preocupamos é patético”.
E é mesmo! Percebi o quanto tenho sido despreocupada com as pessoas à minha volta,  o quanto tenho preferido a ascensão profissional em prol da saúde familiar, o quanto tenho sido egoísta em minhas ações, o quanto não tenho dado valor aos pequenos gestos de amor cotidianos e, por aí, vai...
Adormeci e o que eu imaginava aconteceu: consegui me conectar ao meu mundo de sonhos. Antes desses meses adormecidos no tempo, frequentei lugares bastante interessantes e, nessa noite, voltei a um dos mais especiais: a famosa “Hermana Cultural”.
Esse complexo contém áreas ligadas a todos os tipos de artes, desde a dança até a pintura, passando pela música, pela fotografia, pela literatura e tantas outras. Conectadas por modernas rotas circulares, é possível percorrer todas numa noite só. A quantidade de pessoas caminhando, estudando, trabalhando, criando e produzindo é tão grande que fica fácil acreditar porque a segunda maior região celestial é a das artes, só perdendo para a região da “Saúde e Caridade”. 
Desde o meu retorno aos céus, após minha um tanto fracassada vida passada, morei nos bairros do “Hermana”. O povo desse antro é muito alegre. É o meu povo. Sabe quando você chega num lugar e se sente bem sem nem saber porquê? Pois é, o “Hermana” é assim pra mim. É a minha casa.
           E, nada como retornar ao solo amado depois de um tempo adormecida na esfera terrena. O Luca e a Adélia me esperavam ansiosos. O Luca vocês já conhecem, mas é a primeira vez que falo da Adélia, uma amiga muito especial:
-       Querida Dé, quanto tempo! Que saudades desse sorriso!
-       Ai, Flor, estou tão feliz com a sua volta que fiz questão de vir te encontrar.
Luca, junto a ela, correu para me abraçar:
-       Parabéns!
-       Você não acha que está um pouco atrasado, não?!
-       Não estou dando os parabéns pelo seu aniversário e sim pela sua volta!
-       Ué, mas eu não estava vindo, porque você não me buscou mais...
Adélia interferiu:
-       Flora, querida, não fomos nós que esquecemos de você. Foi você que se fechou para a gente. Até tentamos te alertar do perigo, mas não teve jeito. Você acabou desviando seu foco e nós não conseguimos evitar o ataque.
-       Ataque? – perguntei, assustada.
-       Isso mesmo, um ataque – Luca acrescentou – Um grupo de maus elementos aproveitou essa brecha da sua atenção e sintonizou com a energia negativa que você havia canalizado. Começaram a fazer parte da sua rotina, a influenciar suas atitudes cotidianas, a atrapalhar sua relação com Mateus e a te colocar pra baixo.
-       Meu Deus! Como foi que eu não percebi isso?
-       Você é um forte alvo desse tipo de pessoas – disse Adélia – Eles costumam ficar esperando um vacilo como esse para se aproveitarem da situação. A sorte é que, além de você ter consciência do bem e do mal, você tem o Mateus.
-       Mas, por que vocês estão falando isso?
Adélia continuou:
-       Porque ele percebeu que você estava alterada e começou a combater todo esse mal enviando pensamentos de amor para você, diariamente. E, o que faltava, que era a sua percepção dessa alteração negativa e a conseqüente mudança para o bem, acabou sendo estimulada pelas histórias de amor e superação que você assistiu.
-        Elas abriram sua mente e seu coração – Luca finalizou.
Emocionada, quis logo voltar para minha cama e acordar meu marido com muitos beijos e abraços, mas eles ainda não tinham terminado:
-       Bom, mas vamos deixar isso para trás, porque, agora, finalmente, a gente vai poder te dar seu presente de aniversário. Pode contar, Luca.
Ansiosa, comecei a tremer na base...
-       Flor, lembra aquele pedido que você havia feito há algum tempo ao pessoal das gratificações.
-       Ah, não! Não me diga que eles concederam?
-       Parabéns! Você é a mais nova integrante da caravana pela paz!
Pulei, chorei, abracei os dois, gritei de felicidade! Eles também! Fazer parte dessa caravana é um sonho muito antigo, muito mesmo. O Mateus, assim como a Adélia e o Luca, já fazem parte do grupo há anos, mas eu não havia sido aceita na época, pois alegavam que eu deveria me concentrar apenas nos estudos e em questões familiares complicadas. Já estava até achando que isso não aconteceria mais, pois têm amigos meus que tentam há décadas e não conseguem entrar.
          O grupo sai todas as noites em busca de pessoas que estejam precisando de ajuda, orientando e influenciando a recuperação de muitos. Participar desse trabalho, além de ser muito gratificante, é o que há de melhor para o crescimento próprio. Afinal, é em face da infelicidade dos outros que conseguimos enxergar a nossa felicidade e é em contato com os problemas alheios que podemos resolver os nossos.
No meio do abraço, Adélia explicou:
-       A força com que você lutou contra o que estava lhe afligindo foi tão grande que provou que você está mais do que preparada para fazer parte da caravana.
-       E não acabou! – falou Luca – Você vai fazer parte do grupo do Mateus! 
-       Sério?!
-       Seríssimo! O pessoal disse que ter um casal com o amor que vocês têm, trabalhando juntos para bem, é a melhor coisa que pode existir para o trabalho ser bem sucedido!
-       E, por que vocês me trouxeram para o “Hermana”?
Adélia respondeu:
-       Porque a gente sabe que essa é a sua casa e, nada como estar em casa para receber uma notícia dessas!
-       Aonde está o Mateus agora? Ele está trabalhando? Eu posso acordá-lo para contar a novidade? – perguntei.
-       Vai lá e acorda ele com muitos beijos – falou Luca – A caravana voltará a atuar daqui a dois dias. Estaremos te esperando!
-       Parabéns, linda Flor!
Desci louca para encontrar meu marido e contar a novidade. Mal podia acreditar no que estava acontecendo!
-       Mateus, acorda, Mateus!
     Aos poucos, ele foi abrindo os olhos...
-       Oi, amor... Calma... O que foi?
-       Eu entrei na caravana! E no seu grupo! Eu consegui! Eu consegui!
Bem sonolento, ele abriu um sorriso enorme e disse:
-       Preparada para acordar cansada todos os dias?
-       Preparadíssima!
-       Então, seja bem vinda, meu anjo!
Adormecemos abraçados e cheios de felicidade, traçando planos para as próximas noites repletas de trabalho...
Acordei leve e renovada. A vida sorria. As pessoas pareciam mais bonitas. A inspiração vinha. As coisas pequenas se mostraram pequenas como são. As grandes estimularam minha sensibilidade. Afinal de contas, sou sensível e é, justamente, essa sensibilidade que me fortalece. O que me resta dizer a você é: “Seja também! Sonhe também!”.

sábado, 6 de agosto de 2011

Foi dia de Maria...


Comecei a semana com uma vontade enorme de falar sobre o meu encontro com Mateus nessa nossa vidinha por aqui. O amor com que ele me ninou, no último domingo, despertou em mim sensações incríveis e me instigou a contar um pouquinho da nossa história. Acontece que não consegui fazer isso durante a semana toda. O ritmo de trabalho foi intenso e aquela comichão em escrever foi desaparecendo aos pouquinhos.
           Eis que algo novo começou a me perseguir dia e noite. Foi tão forte que qualquer lembrança da minha vida amorosa foi se escondendo pelas coxias. Quem se preparava para me dar um bote e fazer um lindo espetáculo era apenas uma pessoa: o meu pai.
         A saudade de seus abraços e de suas palavras, de tocar piano para ele ouvir a noite toda, de dançar rosto no rosto ao som de Gershwin e Cole Porter e de mostrar minhas composições novas para ele emitir opinião me açoitaram de tal forma que meu pensamento só carregava sua imagem.
Depois que ele faleceu, há quase cinco anos atrás, só o reencontrei três vezes. E, em todas elas, muito rapidamente. Só deu tempo mesmo de dar meia dúzia de abraços e escutar algumas palavras: muitas de amor, poucas sobre notícias... E, foi no auge dessa saudade que me dei conta de uma coisa: era seu aniversário!
Fiquei toda arrepiada ao constatar tal data. Em sua homenagem, ouvi Sinatra o dia todo e coloquei uma orquídea, que acabara de desabrochar, em cima do meu piano. Conversei um pouquinho com ele em meus pensamentos, toquei a música que compus no dia de sua partida e percebi que a vontade de escrever sobre ele havia me deixado por completo. Na verdade, mesmo depois desse tempo todo, ainda não me sinto preparada para tocar nesse assunto. Quem sabe um dia...
Bom, se aquele era o dia do aniversário de meu pai, de acordo com as minhas contas, dali a dois seria a data do outro alguém mais importante da minha vida: seria o dia de Maria! E, a fim de sanar toda essa minha carência paterna, resolvi abençoar a maternidade que me foi enviada dos céus pensando em diversas formas de surpreendê-la em seu dia. Cheguei a uma decisão um tanto óbvia: faria uma festa surpresa! Era isso!      
Na véspera, fui ao supermercado e comprei balões, pratos e talheres descartáveis, refrigerantes, guardanapos, velas, chapeuzinhos de “Parabéns” e um bolo enorme de morango com calda de chocolate... Hum... Seria incrível!
Maria faz aula de hidroginástica e é lá aonde costumam acontecer os pequenos eventos que ela freqüenta ao longo do ano: festinha de dia das mães, páscoa, amigo oculto de natal, etc... Além disso, ela vive falando de mim para suas colegas de turma e sempre joga aquela indireta do tipo: “Um dia, você podia ir lá me buscar, né?! Falo tanto sobre você que elas são doidas para te conhecer...”. Com tantos pontos favoráveis, parecia o lugar perfeito para surpreendê-la naquela manhã.
Acordei bem cedo para organizar as coisas e chegar a tempo na academia. Faltava escrever um cartão, carregar o carro com o que havia passado a noite na geladeira e ir à floricultura para comprar um lindo buquê de cravos vermelhos que eu havia encomendado no dia anterior. Quinze minutos antes da aula começar, liguei para ela com o intuito de saber se ela realmente estaria presente. Resposta positiva! Era hora de seguir para realizar aquela missão: a missão de agradecer, de alguma maneira, por toda dedicação a mim nas últimas três décadas e em tantas outras vidas!
Ao chegar lá, descarreguei as coisas do carro, pedi ajuda ao porteiro e às recepcionistas e avisei a eles que chegara para fazer uma surpresa de aniversário para minha mãe. Todos embarcaram na idéia, colocaram chapeuzinhos e me ajudaram nos preparativos finais. Munidos do todo necessário, fomos em direção à piscina e, ao chegarmos no acesso mais próximo ao local, uma das recepcionistas foi falar com a professora. Explicou o que aconteceria em alguns instantes e voltou animada para me dizer que havia chegado a hora! Estava tudo pronto para a nossa entrada! Juntos, lá fomos nós:
-       Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades...
O coro dos funcionários seguiu firme e forte até a minha manifestação:
-       Parou, parou, parou! Aonde está Maria? – perguntei à professora.
-       Como assim? Está ali, ué!
-       Mas, aquela não é a Maria!
-       É claro que é!
-       Não a “minha” Maria!
-       Que Maria?
-       A Maria dos Santos!
-       Ah, não! Mas, a D.Maria dos Santos não apareceu por aqui hoje não.
“Meu Deus! Aonde ela estaria? O que havia acontecido para ela não ir à aula, mesmo tendo confirmado, minutos antes, que iria?”. Parecia mentira... O nó veio na garganta. Fiquei sem ação... Não sabia se eu podia chorar ali com todos me observando... Não, era melhor não. Eu haveria de me controlar. Notei que me olhavam com pena e compaixão, sabe?! Que situação mais constrangedora...
Sem falar nada, absolutamente nada, dei as costas e parti. A vontade de jogar aquele bolo no chão, de pisar naquelas flores e de arrancar os chapeuzinhos veio de uma maneira tão forte que o máximo que consegui fazer a fim de evitar tamanho ataque de loucura foi partir sem olhar pra trás.
Os funcionários me acompanharam e, num clima de enterro, recarregaram meu carro com todas aquelas porcarias. Àquela altura do campeonato, era tudo uma grande porcaria!
Peguei o telefone e liguei para a casa de Maria. Quando eu já estava quase desligando, depois de esperar por mais de um minuto alguém atender a ligação, a mãe dela, minha avó postiça de 98 anos, deu o ar da graça:
-       Alô?
-       Oi, Lida! É a Flora! Tudo bem?
-       Oi, minha querida! Tudo bem! Olha, a Maria deu uma saidinha. Disse que volta daqui a pouco.
-       Está bom, então. Vou ligar para o celular dela. Beijo.
Mas, como ligar para ela depois do que eu havia acabado de passar. Em minha mente só vinham frases do tipo: “Por que você mentiu?”, “Eu preparei uma linda festa surpresa e você estragou tudo!”. E, depois de cuspir todas essas palavras, eu choraria por não ter conseguido realizar o que queria...
Meu lado racional – que é muito bem treinado por sinal – não deixaria isso acontecer de forma nenhuma. Eu ligaria e falaria normalmente, afinal, o dia não era meu, era dela:
-       Oi, Flora!
-       Oi, Maria! Aonde você está?
-       No mercado.
-       Sei... Mas, você não falou que ia pra aula?
-       É, mas decidi não ir.
-       Entendi...
-       Está tudo bem, Flor? Você está indo pro trabalho?
-       É... Estou... Tá tudo bem sim.
-       Mais tarde você vem me ver, né?!
-       Vou, vou sim.
-       Então, tá! Te espero!
Desliguei sem entender muito o que eu estava sentindo naquele momento. Definitivamente, não conseguia decifrar. A única frase que soprava em meus ouvidos era: “Ainda dá tempo...”.
“Ainda dá tempo? Ainda dá tempo de quê?”. Naquela conjuntura, essa frase só faria um sentido: ainda daria tempo de correr atrás e realizar o que eu havia sonhado. Dentro de outras circunstâncias, claro! Mas, isso não importava mais. Peguei o caminho para a casa de Maria. Entreguei para os céus e decidi não planejar mais nada. Apenas, faria. Acreditei!
Maria mora numa vila muito charmosa, cercada por pessoas extremamente queridas. Grande parte delas acompanhou meu crescimento, afinal, foi lá que passei grande parte da minha vida, descendo de carrinho pela ladeira, tomando banho na mangueira e batendo de porta em porta para pedir doce.
Assim que estacionei, Seu Júlio, um simpático pedreiro nos seus 84 anos, me avistou e se apressou para cumprimentar:
-       Oi, minha querida! Veio fazer uma surpresa pra Maria? Ela espalhou pra rua inteira que você só viria mais tarde...
-      Vim, sim, Seu Júlio. Aliás, o senhor acaba de me dar uma ótima idéia  e, se puder me ajudar, a surpresa tem como ficar completa!
-       É pra já! Do que você precisa?
Algumas crianças da rua me ajudaram levando as coisas até a casa de Maria e com o aval da minha avó Lida, dei carta branca ao Seu Júlio para nos auxiliar nos preparativos. Tínhamos de ser rápidos, pois Maria, certamente, chegaria dentro de instantes.
Foi a partir desse momento que algo mágico aconteceu. Os moradores da vila começaram a chegar e chegar e chegar... Um, dois, três, quatro, cinco, dez, quinze, vinte... “Minha nossa! Aonde isso vai parar?”. E mais cinco, mais três, mais um, mais dois... Gente que eu nunca tinha visto na vida! Quando resolvi contar, já eram mais de trinta pessoas apertadas em alguns poucos metros quadrados. E, não acabou por aí, não! Elas pareciam brotar de todos os lugares... Eram crianças, jovens, adultos, senhores... Todos para dar os parabéns à Maria.
Meu coração saltitava, as lágrimas rolavam... Eu me sentia nas nuvens. O ambiente estava repleto de energias boas, de risadas, de abraços, palavras bonitas... Era como um sonho bom. Muito bom!
Foi nesse instante que Maria chegou! Cheia de sacolas nos braços, suas pernas bambearam de tanta emoção. Foi preciso segurá-la para não cair. Ela mergulhou num pranto profundo... Um pranto realizado! Jamais poderia imaginar que um simples gesto de amor proporcionaria esse esplendor de felicidade.
Ali aonde estava, parada à porta da casa, largou as sacolas e abriu os braços em minha direção. Corri para abraçá-la por longos segundos... Minutos, quiçá... Lembrei de meu pai... Chorei de alegria e de saudade... Ao pé de seu ouvido, ao som da melodia dos “Parabéns pra você!”, “É big, é big, é big...”, perguntei:
-       Afinal, o que você foi fazer de tão importante no mercado que fez até você faltar a aula?
-   Ora, Flor, fui comprar o suco que você gosta de beber, a batata portuguesa que você gosta de comer, as coisinhas pra fazer a sua torta de limão e umas flores para enfeitar a casa quando você chegasse...
Ainda abraçada, continuei:
-       O aniversário é seu, não meu!
-       Mas, o meu maior presente é você, esqueceu?
As palavras que não tenho agora são as mesmas que não tive naquele momento. Mas, também, pra que palavras quando as atitudes falam sozinhas?

            Essa foi a estória do dia que foi de Maria...