Acho que levei uma surra. Meu corpo todo dói e eu não consigo respirar direito. Certamente, algo muito forte tomou conta de mim e suspeito que seja a gripe.
O mau humor virou meu companheiro e, olha, que acordo 99% dos dias do ano com uma felicidade contagiante, mas, hoje não. Aliás, ontem também não... Ah, e anteontem também. Estou com receio de passar essa média anual continuando nesse ritmo. Ainda estamos em abril e eu já estou quase atingindo o 1% que tenho direito de usar.
Acontece que isso é tiro e queda! Sempre que a voz se afasta de mim para resolver questões maiores, esse mal me aflige. Definitivamente, não posso ficar sem ela. Ela é minha inspiração, minha companheira. É com quem divido minhas indecisões, com quem me abro. Ficar sozinha é o maior tormento de todos: a inspiração desaparece.
Acreditam que fiquei achando que jamais voltaria a escrever? Peguei meus textos e minhas músicas e as velei, como se fosse enterrá-las e perdê-las para sempre. Abri o computador, algumas vezes, para tentar embalar algo com minhas palavras, mas, raramente, saía do primeiro parágrafo. As letras que encontrava não conseguiam agregar nenhum significado ao que tentava transmitir. O caos tomava conta da minha mente e do meu corpo.
O que fazer quando não há nada para escrever? Não escrever nada.
Mas, não posso decepcionar meus leitores logo agora que começo a ganhá-los. Há pouco tempo atrás, nada disso existia e, rapidamente, meu mundo mudou. Passei a enxergar o futuro com novas perspectivas, passei a sonhar de uma maneira diferente. Estava curtindo toda essa novidade, mas, como num passe de mágica, tudo retornava à estaca zero.
Abri o peito e gritei: “Voooooooooz! Volta! Vou mergulhar numa solidão profunda sem teus sussurros”. Para minha infelicidade, ela não respondeu. Mas, uma certeza inundou minha alma: a de que ela só voltaria se eu ficasse bem novamente.
Quando digo “ficar bem”, estou me referindo a sorrir. Sorrir para o mundo à minha volta. Sorrir para as pessoas que encontrar no caminho. Sorrir para o novo dia que surgir à minha frente. Mas, como fazer isso quando o tédio te consome, quando sua energia se enfraquece, quando o mal-estar te assombra? Deveria, urgentemente, achar uma maneira de sanar essa loucura toda. A voz haveria de encontrar as portas abertas em seu retorno e cabia somente à mim esta árdua tarefa.
Comecei a pensar nas coisas que me fazem bem e cheguei à seguinte conclusão: o que me deixa mais feliz é estar na companhia das pessoas que amo. Mas, da maneira que me encontrava, ninguém ia querer ficar ao meu lado. Somente minhas adoráveis cachorrinhas me dariam um desconto. Deveria melhorar rapidamente e achar uma maneira de resolver isso.
Decidi pensar nas coisas que mais me fazem bem quando não estou na companhia dos que amo. Cheguei a uma tríade perfeita: flores, música e poesia. Lembrei do trecho de um livro do Paulo Coelho que conta a história de um jovem que planejava pedir a mão de sua namorada em casamento, após meses de distância e uma longa viagem de trem, a qual ela o esperava ansiosamente. Antes de chegar ao destino, ele distribuiu rosas pelo vagão e pediu a essas pessoas que ao avistarem sua namorada, começassem a entregar-lhe as rosas, enquanto ele faria o pedido. Na época em que li isso, fiquei tão tocada por essa ousadia que jamais pude esquecê-la.
Aquele rapaz distribuiu rosas em busca de sua felicidade. Eu tinha as rosas. Faltava-me a felicidade. Uma luz se fez no ambiente. Uma idéia surgiu. Era isso! Distribuiria flores, música e poesia a fim de reencontrar minha alegria.
Precisava de palavras para me inspirarem. Olhei o livro que se encontrava ao meu lado: “Cem Sonetos de Amor”, de Pablo Neruda. Perfeito! Agarrei-o na certeza de que seria um bom companheiro nessa empreitada.
Me arrumei e ao descer as escadas, me deparei com Dila:
- Oi, Di! Tudo bem?! Como foi de fim de semana?
- Mal... Briguei com o Eduardo... Ele não me esperou em Olaria, ontem à noite, quando eu voltava do trabalho. Cheguei lá, quase onze horas, depois de pegar dois ônibus e uma van e não tinha ninguém em casa. Ele tinha ido pra Caxias e não me avisou, acredita?
- Di, relaxa. Deve ter sido um mau entendido. Ele costuma fazer isso?
- Não. Só que, dessa vez, eu fiquei muito brava com ele. A gente não ta se falando.
- Hum... Isso é mal...
- É... Mas, hoje, quando eu tava vindo pra cá, vi umas coisas na rua que me deixaram tão triste que a raiva do Eduardo passou rapidinho.
- Ah, é? Que é que você viu?
- Dois meninos com deficiência física, que estavam sozinhos na rua, lá na Apoteose. Fiquei olhando e me deu o maior aperto no peito. Aquela vontade de querer pegar eles no colo e levar pra casa, sabe? A gente não pode reclamar de nada.
- É, Di. A gente tem tudo.
- É. A gente tem tudo.
- Qual era a idade deles?
- Um de seis e um de nove, mais ou menos. Estavam abandonados. As roupinhas apertadinhas, entende? Muito triste.
Fizemos uma pequena pausa nesse momento. É impressionante como as histórias dela sempre me pegam de jeito. Segundos depois, conclui:
- A gente tem tudo.
Fui até ela, dei-lhe um beijo na bochecha e saí.
Com esse relato pairando no ar, entrei no carro e fui até uma floricultura perto de casa. Resolvi comprar sete rosas com o intuito de distribuí-las às sete primeiras pessoas que me chamassem a atenção ao longo do dia. Voltei ao carro e liguei o rádio. Ao me deparar com a música que saía dos auto-falantes, soltei um grito de emoção! Era “Smile”, da trilha sonora de “Tempos Modernos” – filme do genial Charlie Chaplin, interpretada, nesse álbum, pelo talentoso pessoal de “Glee”. Lembrei-me do dia em que Dila e eu conversávamos sobre filmes e ela me disse que o que mais gostava era justamente esse. Havia assistido-o, há muitos anos atrás, na escola e sempre se emocionava com aquela música. Pois bem, era exatamente a canção que tomava conta de meu ambiente numa empreitada tão especial. A voz, mesmo de longe, parecia enviar mensagens subliminares...
Quem seria a primeira pessoa escolhida? Será que me receberia bem? Eu começava a ficar taquicárdica. Ao mesmo tempo que queria fazer isso, achava meio insano. Não conseguia imaginar uma pessoa no meio do dia abordando outras com flores e poesia. Fiquei com medo de me tacharem de maluca. Será que me internariam depois dessa? Mesmo assim, algo continuava me instigando a seguir. Tomei coragem e fui.
A praia surgiu paradisíaca para meus olhos. Resolvi parar o carro e ir até ela. O verde rutilante de suas águas me atraíam como um campo magnético. Com uma rosa na mão e o livro na outra, tirei os sapatos e adentrei seu espaço. Molhei os pés e as mãos. Me benzi e fiz uma prece: “Iemanjá, rainha dos mares, me acompanhe nessa jornada. Ilumine meus caminhos. Coloque pessoas certas por onde eu passar”.
- Senhora, vai um picolé para animar o dia?
Puxada pela voz desse homem, fui obrigada a sair do transe que me encontrava. Ainda um pouco confusa, respondi:
- Não, obrigada.
- Não há de quê.
Ele seguiu. Voltei à realidade:
- Ei, senhor! Espere!
- Opa, maravilha! A mademoiselle vai querer de quê?
- Não, na verdade, eu não quero picolé. Gostaria de lhe entregar esta rosa e de lhe dizer umas palavras, se me permite.
Seu rosto franziu. “Que coisa esquisita seria essa?”. Após entregar-lhe uma rosa branca, abri o livro e recitei:
- “Não tenho nunca mais, não tenho sempre. Na areia
a vitória deixou seus pés perdidos
Sou um pobre homem disposto a amar seus semelhantes
Não sei quem és. Te amo. Não dou, não vendo espinhos.”
O homem me reverenciou como um maestro reverencia seu público. Seus olhos marejados falavam mais que qualquer palavra. A rosa foi levada a seu peito, o isopor esquecido na areia. Eu, sem saber o que fazer, pedi licença e saí.
- Mademoiselle, muito obrigada.
- Não diga essas palavras para mim. Diga pra ela – apontei para o mar e parti.
Voltei ao carro leve como uma pluma. Liguei o rádio e o “Smile, though your heart is aching...” soava...
Tornei a dirigir até avistar uma mãe com seus dois filhos brincando numa pracinha. Estacionei e andei até ela:
- Com licença. A senhora me permite entregar-lhe essa flor?
- Não quero não, obrigada.
A mãe ameaçou levantar-se e chamar suas crianças, mas eu, rapidamente, interrompi:
- É de graça. De coração. Não terá absolutamente nada a pagar.
- Mas, pra que isso?
- Porque eu preciso voltar a sorrir.
- Lucas, João! Calcem seus sapatos. Vamos embora, agora!
As crianças, assustadas com o tom de voz da mãe, rapidamente se arrumaram e correram até ela.
- “Moça, conservaste teu coração de pobre,
teus pés de pobre acostumados às pedras,
tua boca que nem sempre teve pão ou delícia.
És do pobre Sul, de onde vem minha alma;
em seu céu tua mãe segue lavando roupa
com minha mãe. Por isso te escolhi, companheira.”
A moça já se encontrava há alguns metros dali, com suas crias sob seus braços. O passo apressado demonstrava o medo enrustido em sua carne genitora. Deixei a rosa amarela em cima do banco e caminhei.
- Moça, eu aceito uma rosa!
A voz era de uma senhora, que ao lado de seus dois companheiros – o marido e um cachorro – repousava escondida, embaixo de uma árvore, ao lado de um carrinho repleto de latinhas e outras bugigangas. Extremamente sujos pela falta de asseio da vida na rua, pareciam ter assistido a cena anterior e curiosos resolveram me indagar:
- Me dá uma rosa, moça! Eu nunca ganhei...
- Claro, senhora. Pode escolher. Pegue duas. Dê uma a seu marido também.
Ela pegou uma chá e uma vermelha. Em minha mão, ainda restaram três.
- A moça não vai falar aquelas palavras bonitas?
Com um sorriso discreto em meus lábios, abri o livro e entoei:
- “A vida minha que te dei se enche
de anos, como o volume de um cacho.
Regressarão as uvas à terra.
E ainda lá embaixo, o tempo segue sendo,
esperando, chovendo sobre o pó,
ávido de apagar até a ausência.”
Tenham um excelente dia.
- Que Deus ilumine seus caminho, moça!
- Que ilumine os nossos. Amém.
Me virei, andei até meu carro e segui confiante. Era impressionante como já me sentia bem melhor. Estava leve e a vida parecia sorrir novamente.
Depois de quarenta minutos dirigindo sem achar outra vítima, resolvi estacionar o carro numa área de prédios comerciais, pessoas apressadas, maletas e pastas embaixo do braço. Tornei a observar.
Eram quase seis da tarde e a quantidade de trabalhadores circulando era assustadora. Havia de escolher um. Apenas um. Meu coração batia mais forte toda vez que me imagina saindo do carro e abordando alguém no meio desse furdunço todo. Parecia arriscado. Mas, eu haveria de cumprir.
Um homem me chamou a atenção no meio de toda essa gente. De terno, gravata e o semblante cabisbaixo, ele caminhava a passos bem lentos, destacando-se na multidão. Saltei do carro e corri até ele:
- Senhor, me permite? – estiquei o braço e entreguei-lhe uma rosa vermelha.
Algumas pessoas começavam a observar, com estranheza...
- Desculpe... Não estou entendendo...
- Não precisa entender. Apenas aceite, por favor. É por uma causa nobre.
- Isso é pegadinha? É pra tv?
- Não, não é pra tv não. É para a minha vida mesmo...
- Mas, você está com algum problema?
As pessoas voltavam a caminhar sem notar-nos mais por ali. Respondi:
- Não, ao contrário. Acredito que tenho que agradecer. Meus problemas são insignificantes, assim como imagino que sejam os seus.
- Sei... Mas, porque eu deveria aceitar uma flor assim, no meio da rua? Você vai me complicar em casa se alguém do meu trabalho estiver assistindo isso.
- Diga, então, que eu mandei pra ela. Mas, faça o serviço completo – abri o livro e rasguei uma página – Tome. Leia pra sua mulher.
- É sério isso? Não é brincadeira, não?
- Tudo depende da sua interpretação. Só te peço uma coisa: não quebre essa corrente. Boa noite!
- Boa noite, menina maluquinha!
Soltei um riso e parti. O homem ficou me observando enquanto eu entrava em meu carro e seguia. Ainda desconfiado, queria ter certeza de que não estaria sendo filmado. “Imagina, só!”
Já era tarde e ainda restavam duas rosas brancas no banco de meu automóvel. Meus olhos cansados já não avistavam muita gente. Era hora de voltar pra casa.
Fiquei imaginando para quem seriam aquelas últimas flores. “Eu já sabia!”
Acordei cedo e corri pra cozinha. Dila estava lá:
- Di, você viu os meninos hoje lá rua?
- Ah, Dona Flora, vi sim... Olha, uma tristeza... Estavam lá, jogadinhos. E o pior é que eles mal conseguem andar por causa da deficiência e...
- Faz um favor pra mim?
- Faço sim. É almoço? Olha, trouxe berinjela e...
- Não, Di. Outro tipo de favor. Escuta. Amanhã, quando estiver vindo pra cá, você vai saltar na Apoteose e entregar essas duas rosas pra eles.
- Que isso, Flora? A senhora ta maluca?
- Não. Faz isso por mim! Por favor!
- Ih, mas eu vou ficar com vergonha...
- Ó, pensa que eles vão ficar felizes com esse gesto seu. E vai te fazer bem, com certeza.
Ela parecia não acreditar na proposta que eu havia feito.
- Ta, ta bom. Só isso tudo?
- Não, tem mais uma coisa. Nesse papel tem umas palavras que eu gostaria que você lesse ao entregar as flores.
- Ah, mas você está complicando muito.
- Di, vai ser importante pra eles. Me ajuda, vai!
Depois de uma longa pausa, veio a resposta que eu esperava:
- Ta bom...
O dia passou e a expectativa pela manhã seguinte saltitava em meu coração. Ela chegou:
- Di, e aí? Eles estavam lá? Você entregou? Leu?
Ela abriu um sorriso emocionado e suas lágrimas começaram a cair. Fui até ela e, além do beijo na bochecha, dei-lhe um abraço fraternal. Agradeci. Ela agradeceu. Ficamos assim por alguns segundos. Imaginava como teria transcorrido a cena. Fechei os olhos e pude vê-la, linda, ao lado daquelas duas crianças, entoando os simples versos que me fizeram sorrir novamente:
- “Sorria, embora seu coração esteja doendo
Sorria, mesmo que ele esteja partido
Quando há nuvens no céu
Você sobreviverá...
Sorria e talvez amanhã
Você descobrirá que a vida ainda vale a pena
Ilumine sua face com alegria
Esconda todo rastro de tristeza
Embora uma lágrima possa estar tão próxima
Este é o momento que você tem que continuar tentando
Sorria! Pra que serve o choro?
Você descobrirá que a vida ainda vale a pena
Se você apenas sorrir”
Toda tristeza ou mal-humor se esvairiu naquele abraço. Meu espírito se encheu de felicidade novamente, na certeza de que a voz, quando estivesse pronta, encontraria os caminhos abertos para seu esperado e necessário retorno. Que assim seja...