quarta-feira, 27 de abril de 2011

Dilema de Abacaxi


É claro que ele falou mal de mim. É óbvio que sim. Ai, como eu sou idiota! Ele, certamente, aproveitou a primeira oportunidade para pegar o meu chefe e contar a versão dele da história. A versão mentirosa, inventada. E eu estou aqui, agora, desabafando com um computador, após ter ocupado, aproximadamente, quarenta minutos da noite do meu marido com essa aflição patética. E pensando se eu já deveria ter contado ou não ao meu chefe o que de fato aconteceu naquele telefonema. Será que ainda dá pra contar? É. Posso ligar pra ele amanhã bem cedo e tocar nesse assunto, assim como quem não quer nada. Talvez seja melhor falar ao vivo... Mas, só estarei com ele depois de amanhã e, até lá, já não sei mais se estarei achando uma boa idéia levantar essa questão. Ai, que dúvida...
Bom, enquanto não descubro o que fazer, resolvo escrever com a única esperança de encontrar uma solução no mínimo inteligente. Acabo de ser expulsa do meu quarto por Mateus, que ávido por assistir uma partida de futebol, achou melhor eu tentar descobrir isso sozinha mesmo.
Acho pertinente dividir com vocês o fato, mas escolho fazê-lo metaforicamente. Acreditem: a quantidade de palavras exclusivas do meio cinematográfico incluídas em um único parágrafo, faria com que vocês desistissem de prosseguir com a leitura.
Imaginem a seguinte situação: uma moça chega à um restaurante e é atendida pelo maître, que, sem muita paciência para recepcioná-la, a encaminha até a mesa mais próxima. Ela senta-se e fica aguardando até que um garçom dirija-se à ela para que possa fazer o pedido. Mas, nada. Ninguém aparece. Quinze minutos depois, ela resolve chamar o maître, que parado na porta do restaurante, não havia nem percebido tamanho descaso com a moça:
-       Senhor?!
-       Sim.
-       Pode vir até aqui, por favor?
-       Pois não?
-       Eu gostaria de fazer meu pedido, mas, até agora nenhum garçom me atendeu.
-       O nosso único garçom está de folga hoje, mas temos uma garçonete cobrindo a falta dele.
-       E o senhor pode, por gentileza, chamar essa garçonete para me atender?
-       Sim. Mas, o que a senhora deseja?
-       Fazer meu pedido.
-       Sim. Mas, o que a senhora quer pedir?
-       Um suco de abacaxi.
-       Como assim, um suco de abacaxi?
-       Um suco de abacaxi, ué! Como assim “como assim”?
-       É que eu não sei se tem suco de abacaxi.
-       E será que a garçonete não sabe se tem?
-       A garçonete não tem que saber uma coisa dessas.
-       Como ela não tem que saber? É claro que ela tem que saber uma coisa dessas.
-       Não estou entendendo aonde a senhora quer chegar.
-       Eu apenas estou querendo saber se tem suco de abacaxi!
-       Mas, eu já disse que não tenho como informar isso pra senhora!
-       O senhor não pode perguntar a alguém que saiba?
-       É impressão minha ou a senhora está “perseguindo” o garçom?
-       “Perseguindo” o garçom??? É óbvio que não. Ele nem está aqui hoje, não é?! Porque eu estaria o “perseguindo”?
-       Porque já faz um tempo que os clientes têm feito perguntas que o garçom não deve responder!
-       Como “se tem um suco de abacaxi”, por exemplo?
-       Exatamente. Não é obrigação dele saber isso!
-       Mas, eu não estou querendo que ele me responda isso. Eu só estou querendo saber se tem suco de abacaxi. E, essa informação, pode vir de qualquer pessoa. Como da garçonete, por exemplo.
-       Mas, eu não sei aonde está a garçonete.
-       Olha, senhor, eu não vou nem entrar nesse mérito, mas, estou cansada, não há outros restaurantes pela região e eu gostaria muito de tomar um suco de abacaxi. O senhor, mesmo não sendo a pessoa adequada, poderia descobrir isso pra mim?
Extremamente irritado com a pergunta da moça, o maître vira as costas e parte em direção à cozinha. Cinco minutos depois, ele retorna com a informação:
-       Não tem suco de abacaxi.
-       Mas, deveria ter. O nome do restaurante é “Abacaxi e Cia”!
-       É. Mas, não tem.
-       Ok, senhor. Muito obrigada.
No caminho até a saída, ela passa por uma mesa, onde, sentado, encontra-se um rapaz tomando um vistoso suco de abacaxi. Sem se agüentar, pergunta a ele:
-       Com licença, isso é suco de abacaxi?
-       É.
-       Daqui do restaurante?
Com um ar de questionamento, ele responde:
-       Sim?!?!?!
A moça, tentando se manter calma, dá meia volta e parte em direção ao maître:
-       O senhor não falou que não tinha suco de abacaxi?
-       Falei.
-       Mas, aquele rapaz está tomando um suco de abacaxi.
-       Ah, tá?
-       Sim, está! Então???
-       Então, vai ver que tem.
Ela respira fundo, muito fundo e decide sair do restaurante. Algo que deveria ter feito desde o início...
            Pois bem, eu sou a moça. E, ele, é o suco de abacaxi! Não, quem dera! Ele é o maldito maître, que a essa altura do campeonato, me detesta com todas as forças só porque eu queria um suco de abacaxi! E deve ter enchido a cabeça do meu chefe com um monte de bobagens e invenções ao meu respeito. Ele me detesta, com certeza. Mas, será que eu sou detestável? Ai, socorro, não posso ter pessoas que não gostem de mim! Não consigo conviver com isso! Eu sou uma pessoa tão legal... Talvez, eu não seja. Talvez, eu seja insuportável. Não, aí já é demais!
Começo, enlouquecidamente, a pensar em todas as pessoas que, provavelmente, não gostam de mim. Duas no trabalho (só duas no trabalho? Devem ter mais...), umas cinco na família (ai, essa doeu...), umas três da época do colégio e umas duas da época do balé. Contabilizando chego à doze pessoas. Coloco umas quatro para uma margem de erro. Dezesseis! No mínimo existem umas dezesseis pessoas que, certamente, não gostam de mim. Fora as que eu não sei que não gostam... Putz, será que estou um pouco acima da média?
Acho que terei que conviver com essa dúvida, a não ser que eu faça uma enquete no blog: “Quantas pessoas não gostam de você?”. Seria, no mínimo polêmico. Poderia até criar um grupo de auto-ajuda para pessoas que, como eu, não conseguem conviver com o fato de não serem queridas por, absolutamente, todos à sua volta.
Mas, pensando bem, eu não posso querer “ser querida” por todos se eu também não “quero” todos. Das dezesseis pessoas contabilizadas, aproximadamente, oito mantém a reciprocidade comigo. Mas, a minha listinha das pessoas que eu não quero bem também inclui nomes de pessoas que eu acredito que me queiram bem. Sendo assim, acabo igualando as duas listas e chegando à conclusão de que não há problema nenhum não ser querida por todos, visto que você também não quer bem a todos. Um pouco confuso? Acho que não, né? Dá pra entender.
Ufa! Respiro até mais aliviada depois dessa super enquete. Terapeuta pra quê? As minhas palavras respondem tudo. Hum, respondem mais ou menos tudo. Ainda continuo sem saber se ligo ou não ligo pro meu chefe...

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ser mãe é universal


O tema “Mãe” pode parecer um pouco piegas e extremamente batido, mas resolvi escrever mesmo assim. As razões que me levaram a tal atitude são tantas que um simples post não poderia explicá-las. Por um momento, achei melhor desistir. Não conseguiria transmitir o necessário sem expor todas as circunstâncias. Depois, cheguei à conclusão de que, certamente, todas essas circunstâncias não acrescentariam em nada. Ser mãe é universal.
Entre lágrimas, sorrisos, amor e obsessão, a figura materna sempre me intrigou e me fez divagar sobre seu verdadeiro papel. Que ser seria esse que resolve nos gerir? Que empresta seu corpo para a criação de uma nova vida. É difícil acreditar que sejamos o resultado da junção de um espermatozóide, que liberado abruptamente numa relação sexual, encontra um óvulo, tranqüilo e indefeso, e invade seu espaço a fim de se tornar “eu”.  E, não satisfeito, se multiplica velozmente formando braços, pernas, olhos, nariz, cérebro, cabelo, tudo mais e um coração que vai bater por tempo indeterminado.
O mais curioso é que aquele ser que empresta seu corpo para tal manifestação da natureza não consegue exercer controle sobre nada que ocorre entre a região que vai do seu mais alto fio de cabelo até o seu mais baixo dedão do pé. Ele é entregue a uma transformação divina, a uma engrenagem involuntária e, após, alguns meses a mais, uns quilos a mais e umas estrias a mais, é obrigado a expulsar aquele indivíduo fresquinho de seu corpo para que ele possa ser entregue a toda essa loucura terrena.
Pois bem: é nessa hora que tudo que era involuntariamente involuntário torna-se necessariamente voluntário. A partir de agora, essa pessoinha, com futuro RG e CPF, precisa da sua mamãe canguru para sobreviver, para crescer, para evoluir e se tornar um bom cidadão. Para aprender a respirar e sugar o leite que sai daquele corpo, para conseguir engatinhar, andar e enxergar o mundo que resplandece a sua volta. Para falar o seu idioma e estabelecer a comunicação com seus semelhantes. Para entender o que é alegria e o que é tristeza. Para se sentir seguro e confiante em situações de risco e fazer escolhas certas em momentos de indecisão. Acima de tudo, esse pequeno grande ser precisa de alguém que o instrua a viver. Que estabeleça um laço eterno de confiança e desprendimento. Isso é ser mãe.
Ainda mais nobre do que ser mãe, é não ser a mãe e sê-la. É criar alguém que não saiu de seu corpo e amá-lo como se o tivesse fabricado. É assumir para si as responsabilidades por hora imaginadas à outra pessoa, mas recebidas por aquela como seu maior presente. Comigo foi exatamente assim...
 Há uns dias atrás, durante meu sono, fui até um lugar conhecido como “Espaço do Entendimento”. Que eu me lembre, foi a primeira vez que fui levada até lá. A pequena cidade era formada por diversos prédios que, ligados entre si por enormes plataformas, costuravam a arquitetura flutuante do lugar. A cor predominante era bege, que misturada com outros tons pastéis, davam um ar menos sóbrio àquele cenário.
Por um momento, fiquei receosa. Estou acostumada a freqüentar lugares mais alegres e sem tantas formas. Luca, um amigo celeste, me acompanhava:
-       Flora, você tanto pediu que conseguiu.
-       Consegui o quê? Não lembro de ter estado aqui antes...
-       Pois é. Também nunca estive. Mas, tem alguém te esperando numa dessas salas.
-       Quem?
-       Laura.
-       Quem é Laura?
-       Não sei. Vamos descobrir...
Senti meu coração disparar. Quem seria essa pessoa me esperando? Laura, Laura... Não conheço ninguém com esse nome. Nada mais me restava a não ser seguir o meu amigo até o tal encontro.
-       Bloco 7. Sala 27. Aonde será isso? Vamos perguntar.
Se ele não sabia, imagina eu! Só podia ser brincadeira... O Luca perguntou para umas cinco pessoas como se fazia para chegar àquela sala. Andamos muito, nos perdemos... As placas eram um tanto confusas e ficavam nos levando sempre para um hall bem grande cheio de escadas:
-       Não é possível! A gente está andando em círculos. Vamos embora, Luca!
-       Não, Flor! Calma! A gente vai encontrar.
Foi nesse instante que uma voz surgiu lá de cima:
-       Flora?!
“Ai, meu Deus! Não faz isso comigo que eu tenho um treco!”. Desconfiada, sem avistá-la, respondi:
-       Sim. Sou eu.
-       Suba, minha querida. Te espero há muito.
-       É... desculpa... A gente estava um pouco perdido e...
-       Te espero há anos.
Olhei para Luca e tive vontade de acordar. Minha cama estava tão confortável lá embaixo e isso aqui parecia um tanto assustador.
-       Vai, Flora. Vou ficar te esperando lá na entrada.
Sussurrando, falei:
-       Tem certeza que eu tenho que ir sozinha?! Você não acha que seria legal conhecer a Laura?
-       Para com isso! Coragem! Vai ser bom pra você.
Encarei a escada, respirei fundo e subi.
No trajeto até a Laura, imagens iam surgindo pelas paredes. A cada passo que eu dava, um pedaço importante da minha vida se formava. Podia ouvir as vozes, a música... Sentir o cheiro, a sensação do tato... Uma emoção muito forte tomou conta de mim: era uma felicidade jamais experimentada antes. A minha vida se formava em planos e seqüências dignas de um Oscar. Eu, como protagonista, merecia um prêmio. Em alguns momentos, minha vontade era parar e entrar por aquela parede, viver tudo aquilo novamente. Em outros, apressava o passo, não queria nem ver...
-       Venha, minha querida – A voz de Laura aparecia em primeiro plano.
Dei mais uns cinco passos e cheguei até aquela mulher que, sentada sob algo que não consigo descrever, me aguardava com um sorriso angelical. O ambiente estava repleto de uma energia boníssima. De aonde viria tamanha sensação? Olhava para ela, mas, não enxergava nada que justificasse aquilo, nenhuma luz, nenhum raio de nada... Por um momento, só queria descobrir o que era aquilo que estava me fazendo tão bem:
-       É a conexão dos seus sentimentos com os meus.
“Puxa! Ela tinha lido meus pensamentos”.
-       É nossa sintonia que estabelece essa ambiência. Chegue mais perto. Me dê um abraço.
Fui até ela e retribui o carinho. Meus olhos se encheram de água e não pude conter a emoção. Havia sido tanta novidade junta que eu me desestabilizara por completo.
-       Quem é você? O que está acontecendo?
Ela emendou:
-       O que você pediu há alguns dias atrás?
-       O que eu pedi há alguns dias atrás?
-       Você pediu uma explicação, não lembra?
-       Não.
-       Vamos lá: feche os olhos, busque na memória.
Obedeci, mas nada acontecia...
-       Você estava indo trabalhar, mas, antes de sair de casa, fez uma oração.
-       Eu sempre faço isso.
-       Sim. Mas, nesse dia, você fez uma pergunta.
-       Hum... Deixa eu pensar... Sobre o trabalho, não... Sobre meu casamento, também não... Sobre a...
-       Maternidade.
Desatei a chorar. O quebra-cabeça começava a fazer sentido, as imagens na escada, as coisas que se sucederam nos últimos meses... “Meu Deus! Que loucura!”
-       Você consegue lembrar exatamente qual foi a sua pergunta?
-       Sim.
-       Então, repita pra mim, por favor.
-       O que é ser mãe?
-       E você já conseguiu descobrir?
-       Não sei se conseguirei sem antes ter um filho.
-       Flora, escuta uma coisa: você já é mãe, já foi mãe e ainda será mãe. As cenas que foram mostradas a você na sua vinda até essa sala têm algo em comum, não têm?
-       Sim.
-       Diga pra mim o que é que elas têm em comum.
-       Todas têm Maria.
-       Perfeito. Além de Maria, o que mais elas têm?
-       Em comum?
-       Sim, em comum.
-       Não sei. Foram tantas imagens. Acho que estou um pouco confusa...
-       Volte atrás em seus pensamentos e fale em voz alta as situações que lembrares.
-       Está bem. Vou começar: a vez em que quase morri, com dez dias de vida e Maria me salvou; a minha primeira aula de balé; o primeiro dia na escola; as pequenas cirurgias que fiz; os conflitos entre meus pais no lar; as brincadeiras no parquinho, as férias em Teresópolis com Chico e Serena; os deveres de casa; as apresentações de dança; as crises de minha mãe; a morte de meu pai; as noites em que dormia abraçada a Maria e as estórias que me contava para dormir; o vestibular e o primeiro emprego; os preparativos para meu casamento...
-       É o suficiente. Pode parar de falar. Você não consegue identificar mais nada, além de Maria, em todos esses momentos?
-       Acho que não.
-       Minha querida, você não está percebendo o mais importante.
-       Desculpe, Laura, mas não estou entendendo.
-       O que têm em comum em todos esses momentos e o que fez você conseguir evoluir com eles é justamente o que responde à sua pergunta: amor.
-       A resposta à minha pergunta é “amor”?
-       Quase isso. Não exatamente desta maneira, mas quase isso.
-       Então, eu já sabia. Pra ser mãe é preciso amar. Sendo assim, “ser mãe é amar”.
-       E a pessoa que mais te amou foi por acaso sua mãe?
Não consegui responder. O nó se estabeleceu novamente em minha garganta e eu travei.
-       Responda, Flora. A pessoa que esteve ao seu lado em todos os momentos mais importantes dessa sua vida foi a sua mãe?
-       Não.
-       Quem foi então?
-       Foi Maria.
-       Então, Flora: “Amar é ser mãe”.
Ela se virou e ameaçou partir. “Não. Ela não podia me deixar ali sem ao menos me dizer quem era”.
-       Diga-me, ao menos, quem és!
Ela parou aonde estava, de costas. Hesitou por um momento que pareceu uma eternidade. Tornou a virar-se e me encarou nos olhos:
-       Sou a filha que amarás um dia.
Não soube reagir a essas palavras. Não estava preparada para ouvi-las quiçá para compreendê-las. A minha perplexidade foi tão grande que, paralisada, assisti a sua partida.
Depois disso, não vi mais ninguém. Nem sei se voltei a encontrar o Luca ou se fui para mais algum lugar. Só sei que acordei leve e feliz, no dia seguinte, carregada por uma enxurrada de beijos de Mateus.
Antes de qualquer coisa, peguei meu telefone e liguei para Maria. Ela atendeu:
-       Alô!
E, eu emendei:
-       Eu também te amo, mãe!
Sem muito entender o que aquela frase significava pra mim, ela completou:
-       E eu, mais ainda, minha filha.
Disso, eu tinha certeza.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sorria


Acho que levei uma surra. Meu corpo todo dói e eu não consigo respirar direito. Certamente, algo muito forte tomou conta de mim e suspeito que seja a gripe.
O mau humor virou meu companheiro e, olha, que acordo 99% dos dias do ano com uma felicidade contagiante, mas, hoje não. Aliás, ontem também não... Ah, e anteontem também. Estou com receio de passar essa média anual continuando nesse ritmo. Ainda estamos em abril e eu já estou quase atingindo o 1% que tenho direito de usar.
Acontece que isso é tiro e queda! Sempre que a voz se afasta de mim para resolver questões maiores, esse mal me aflige. Definitivamente, não posso ficar sem ela. Ela é minha inspiração, minha companheira. É com quem divido minhas indecisões, com quem me abro. Ficar sozinha é o maior tormento de todos: a inspiração desaparece.
Acreditam que fiquei achando que jamais voltaria a escrever? Peguei meus textos e minhas músicas e as velei, como se fosse enterrá-las e perdê-las para sempre. Abri o computador, algumas vezes, para tentar embalar algo com minhas palavras, mas, raramente, saía do primeiro parágrafo. As letras que encontrava não conseguiam agregar nenhum significado ao que tentava transmitir. O caos tomava conta da minha mente e do meu corpo.
O que fazer quando não há nada para escrever? Não escrever nada.
Mas, não posso decepcionar meus leitores logo agora que começo a ganhá-los. Há pouco tempo atrás, nada disso existia e, rapidamente, meu mundo mudou. Passei a enxergar o futuro com novas perspectivas, passei a sonhar de uma maneira diferente. Estava curtindo toda essa novidade, mas, como num passe de mágica, tudo retornava à estaca zero.
Abri o peito e gritei: “Voooooooooz! Volta! Vou mergulhar numa solidão profunda sem teus sussurros”. Para minha infelicidade, ela não respondeu. Mas, uma certeza inundou minha alma: a de que ela só voltaria se eu ficasse bem novamente.
Quando digo “ficar bem”, estou me referindo a sorrir. Sorrir para o mundo à minha volta. Sorrir para as pessoas que encontrar no caminho. Sorrir para o novo dia que surgir à minha frente. Mas, como fazer isso quando o tédio te consome, quando sua energia se enfraquece, quando o mal-estar te assombra? Deveria, urgentemente, achar uma maneira de sanar essa loucura toda. A voz haveria de encontrar as portas abertas em seu retorno e cabia somente à mim esta árdua tarefa.
Comecei a pensar nas coisas que me fazem bem e cheguei à seguinte conclusão: o que me deixa mais feliz é estar na companhia das pessoas que amo. Mas, da maneira que me encontrava, ninguém ia querer ficar ao meu lado. Somente minhas adoráveis cachorrinhas me dariam um desconto. Deveria melhorar rapidamente e achar uma maneira de resolver isso.
Decidi pensar nas coisas que mais me fazem bem quando não estou na companhia dos que amo. Cheguei a uma tríade perfeita: flores, música e poesia. Lembrei do trecho de um livro do Paulo Coelho que conta a história de um jovem que planejava pedir a mão de sua namorada em casamento, após meses de distância e uma longa viagem de trem, a qual ela o esperava ansiosamente. Antes de chegar ao destino, ele distribuiu rosas pelo vagão e pediu a essas pessoas que ao avistarem sua namorada, começassem a entregar-lhe as rosas, enquanto ele faria o pedido. Na época em que li isso, fiquei tão tocada por essa ousadia que jamais pude esquecê-la.
Aquele rapaz distribuiu rosas em busca de sua felicidade. Eu tinha as rosas. Faltava-me a felicidade. Uma luz se fez no ambiente. Uma idéia surgiu. Era isso! Distribuiria flores, música e poesia a fim de reencontrar minha alegria.
Precisava de palavras para me inspirarem. Olhei o livro que se encontrava ao meu lado: “Cem Sonetos de Amor”, de Pablo Neruda. Perfeito! Agarrei-o na certeza de que seria um bom companheiro nessa empreitada.
Me arrumei e ao descer as escadas, me deparei com Dila:
-       Oi, Di! Tudo bem?! Como foi de fim de semana?
-       Mal... Briguei com o Eduardo... Ele não me esperou em Olaria, ontem à noite, quando eu voltava do trabalho. Cheguei lá, quase onze horas, depois de pegar dois ônibus e uma van e não tinha ninguém em casa. Ele tinha ido pra Caxias e não me avisou, acredita?
-       Di, relaxa. Deve ter sido um mau entendido. Ele costuma fazer isso?
-       Não. Só que, dessa vez, eu fiquei muito brava com ele. A gente não ta se falando.
-       Hum... Isso é mal...
-       É... Mas, hoje, quando eu tava vindo pra cá, vi umas coisas na rua que me deixaram tão triste que a raiva do Eduardo passou rapidinho.
-       Ah, é? Que é que você viu?
-       Dois meninos com deficiência física, que estavam sozinhos na rua, lá na Apoteose. Fiquei olhando e me deu o maior aperto no peito. Aquela vontade de querer pegar eles no colo e levar pra casa, sabe? A gente não pode reclamar de nada.
-       É, Di. A gente tem tudo.
-       É. A gente tem tudo.
-       Qual era a idade deles?
-       Um de seis e um de nove, mais ou menos. Estavam abandonados. As roupinhas apertadinhas, entende? Muito triste.
Fizemos uma pequena pausa nesse momento. É impressionante como as histórias dela sempre me pegam de jeito. Segundos depois, conclui:
-       A gente tem tudo.
Fui até ela, dei-lhe um beijo na bochecha e saí.
Com esse relato pairando no ar, entrei no carro e fui até uma floricultura perto de casa. Resolvi comprar sete rosas com o intuito de distribuí-las às sete primeiras pessoas que me chamassem a atenção ao longo do dia. Voltei ao carro e liguei o rádio. Ao me deparar com a música que saía dos auto-falantes, soltei um grito de emoção! Era “Smile”, da trilha sonora de “Tempos Modernos” – filme do genial Charlie Chaplin, interpretada, nesse álbum, pelo talentoso pessoal de “Glee”. Lembrei-me do dia em que Dila e eu conversávamos sobre filmes e ela me disse que o que mais gostava era justamente esse. Havia assistido-o, há muitos anos atrás, na escola e sempre se emocionava com aquela música. Pois bem, era exatamente a canção que tomava conta de meu ambiente numa empreitada tão especial. A voz, mesmo de longe, parecia enviar mensagens subliminares...
Quem seria a primeira pessoa escolhida? Será que me receberia bem? Eu começava a ficar taquicárdica. Ao mesmo tempo que queria fazer isso, achava meio insano. Não conseguia imaginar uma pessoa no meio do dia abordando outras com flores e poesia. Fiquei com medo de me tacharem de maluca. Será que me internariam depois dessa? Mesmo assim, algo continuava me instigando a seguir. Tomei coragem e fui.
A praia surgiu paradisíaca para meus olhos. Resolvi parar o carro e ir até ela. O verde rutilante de suas águas me atraíam como um campo magnético. Com uma rosa na mão e o livro na outra, tirei os sapatos e adentrei seu espaço. Molhei os pés e as mãos. Me benzi e fiz uma prece: “Iemanjá, rainha dos mares, me acompanhe nessa jornada. Ilumine meus caminhos. Coloque pessoas certas por onde eu passar”.
-       Senhora, vai um picolé para animar o dia?
Puxada pela voz desse homem, fui obrigada a sair do transe que me encontrava. Ainda um pouco confusa, respondi:
-       Não, obrigada.
-       Não há de quê.
Ele seguiu. Voltei à realidade:
-       Ei, senhor! Espere!
-       Opa, maravilha! A mademoiselle vai querer de quê?
-       Não, na verdade, eu não quero picolé. Gostaria de lhe entregar esta rosa e de lhe dizer umas palavras, se me permite.
Seu rosto franziu. “Que coisa esquisita seria essa?”. Após entregar-lhe uma rosa branca,  abri o livro e recitei:
-       “Não tenho nunca mais, não tenho sempre. Na areia
a vitória deixou seus pés perdidos
Sou um pobre homem disposto a amar seus semelhantes
Não sei quem és. Te amo. Não dou, não vendo espinhos.”
            O homem me reverenciou como um maestro reverencia seu público. Seus olhos marejados falavam mais que qualquer palavra. A rosa foi levada a seu peito, o isopor esquecido na areia. Eu, sem saber o que fazer, pedi licença e saí.
-       Mademoiselle, muito obrigada.
-       Não diga essas palavras para mim. Diga pra ela – apontei para o mar e parti.
Voltei ao carro leve como uma pluma. Liguei o rádio e o “Smile, though your heart is aching...” soava...
Tornei a dirigir até avistar uma mãe com seus dois filhos brincando numa pracinha. Estacionei e andei até ela:
-       Com licença. A senhora me permite entregar-lhe essa flor?
-       Não quero não, obrigada.
A mãe ameaçou levantar-se e chamar suas crianças, mas eu, rapidamente, interrompi:
-       É de graça. De coração. Não terá absolutamente nada a pagar.
-       Mas, pra que isso?
-       Porque eu preciso voltar a sorrir.
-       Lucas, João! Calcem seus sapatos. Vamos embora, agora!
As crianças, assustadas com o tom de voz da mãe, rapidamente se arrumaram e correram até ela.
-       “Moça, conservaste teu coração de pobre,
teus pés de pobre acostumados às pedras,
tua boca que nem sempre teve pão ou delícia.

És do pobre Sul, de onde vem minha alma;
em seu céu tua mãe segue lavando roupa
com minha mãe. Por isso te escolhi, companheira.”
          A moça já se encontrava há alguns metros dali, com suas crias sob seus braços. O passo apressado demonstrava o medo enrustido em sua carne genitora. Deixei a rosa amarela em cima do banco e caminhei.
-       Moça, eu aceito uma rosa!
A voz era de uma senhora, que ao lado de seus dois companheiros – o marido e um cachorro – repousava escondida, embaixo de uma árvore, ao lado de um carrinho repleto de latinhas e outras bugigangas. Extremamente sujos pela falta de asseio da vida na rua, pareciam ter assistido a cena anterior e curiosos resolveram me indagar:
-       Me dá uma rosa, moça! Eu nunca ganhei...
-       Claro, senhora. Pode escolher. Pegue duas. Dê uma a seu marido também.
Ela pegou uma chá e uma vermelha. Em minha mão, ainda restaram três.
-       A moça não vai falar aquelas palavras bonitas?
Com um sorriso discreto em meus lábios, abri o livro e entoei:
-       “A vida minha que te dei se enche
de anos, como o volume de um cacho.
Regressarão as uvas à terra.

E ainda lá embaixo, o tempo segue sendo,
esperando, chovendo sobre o pó,
ávido de apagar até a ausência.”
Tenham um excelente dia.
-       Que Deus ilumine seus caminho, moça!
-       Que ilumine os nossos. Amém.
Me virei, andei até meu carro e segui confiante. Era impressionante como já me sentia bem melhor. Estava leve e a vida parecia sorrir novamente.
Depois de quarenta minutos dirigindo sem achar outra vítima, resolvi estacionar o carro numa área de prédios comerciais, pessoas apressadas, maletas e pastas embaixo do braço. Tornei a observar.
Eram quase seis da tarde e a quantidade de trabalhadores circulando era assustadora. Havia de escolher um. Apenas um. Meu coração batia mais forte toda vez que me imagina saindo do carro e abordando alguém no meio desse furdunço todo. Parecia arriscado. Mas, eu haveria de cumprir.
Um homem me chamou a atenção no meio de toda essa gente. De terno, gravata e o semblante cabisbaixo, ele caminhava a passos bem lentos, destacando-se na multidão. Saltei do carro e corri até ele:
-       Senhor, me permite? – estiquei o braço e entreguei-lhe uma rosa vermelha.
Algumas pessoas começavam a observar, com estranheza...
-       Desculpe... Não estou entendendo...
-       Não precisa entender. Apenas aceite, por favor. É por uma causa nobre.
-       Isso é pegadinha? É pra tv?
-       Não, não é pra tv não. É para a minha vida mesmo...
-       Mas, você está com algum problema?
As pessoas voltavam a caminhar sem notar-nos mais por ali. Respondi:
-       Não, ao contrário. Acredito que tenho que agradecer. Meus problemas são insignificantes, assim como imagino que sejam os seus.
-       Sei... Mas, porque eu deveria aceitar uma flor assim, no meio da rua? Você vai me complicar em casa se alguém do meu trabalho estiver assistindo isso.
-       Diga, então, que eu mandei pra ela. Mas, faça o serviço completo – abri o livro e rasguei uma página – Tome. Leia pra sua mulher.
-       É sério isso? Não é brincadeira, não?
-       Tudo depende da sua interpretação. Só te peço uma coisa: não quebre essa corrente. Boa noite!
-       Boa noite, menina maluquinha!
Soltei um riso e parti. O homem ficou me observando enquanto eu entrava em meu carro e seguia. Ainda desconfiado, queria ter certeza de que não estaria sendo filmado. “Imagina, só!”
Já era tarde e ainda restavam duas rosas brancas no banco de meu automóvel. Meus olhos cansados já não avistavam muita gente. Era hora de voltar pra casa.
Fiquei imaginando para quem seriam aquelas últimas flores. “Eu já sabia!”
Acordei cedo e corri pra cozinha. Dila estava lá:
-       Di, você viu os meninos hoje lá rua?
-       Ah, Dona Flora, vi sim... Olha, uma tristeza... Estavam lá, jogadinhos. E o pior é que eles mal conseguem andar por causa da deficiência e...
-       Faz um favor pra mim?
-       Faço sim. É almoço? Olha, trouxe berinjela e...
-       Não, Di. Outro tipo de favor. Escuta. Amanhã, quando estiver vindo pra cá, você vai saltar na Apoteose e entregar essas duas rosas pra eles.
-       Que isso, Flora? A senhora ta maluca?
-       Não. Faz isso por mim! Por favor!
-       Ih, mas eu vou ficar com vergonha...
-       Ó, pensa que eles vão ficar felizes com esse gesto seu. E vai te fazer bem, com certeza.
Ela parecia não acreditar na proposta que eu havia feito.
-       Ta, ta bom. Só isso tudo?
-       Não, tem mais uma coisa. Nesse papel tem umas palavras que eu gostaria que você lesse ao entregar as flores.
-       Ah, mas você está complicando muito.
-       Di, vai ser importante pra eles. Me ajuda, vai!
Depois de uma longa pausa, veio a resposta que eu esperava:
-       Ta bom...
O dia passou e a expectativa pela manhã seguinte saltitava em meu coração. Ela chegou:
-       Di, e aí? Eles estavam lá? Você entregou? Leu?
Ela abriu um sorriso emocionado e suas lágrimas começaram a cair. Fui até ela e, além do beijo na bochecha, dei-lhe um abraço fraternal. Agradeci. Ela agradeceu. Ficamos assim por alguns segundos. Imaginava como teria transcorrido a cena. Fechei os olhos e pude vê-la, linda, ao lado daquelas duas crianças, entoando os simples versos que me fizeram sorrir novamente:
-       Sorria, embora seu coração esteja doendo
Sorria, mesmo que ele esteja partido
Quando há nuvens no céu
Você sobreviverá...
Sorria e talvez amanhã
Você descobrirá que a vida ainda vale a pena

Ilumine sua face com alegria
Esconda todo rastro de tristeza
Embora uma lágrima possa estar tão próxima
Este é o momento que você tem que continuar tentando
Sorria! Pra que serve o choro?
Você descobrirá que a vida ainda vale a pena
Se você apenas sorrir
Toda tristeza ou mal-humor se esvairiu naquele abraço. Meu espírito se encheu de felicidade novamente, na certeza de que a voz, quando estivesse pronta, encontraria os caminhos abertos para seu esperado e necessário retorno. Que assim seja...