terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A voz do coração


Meus olhos se abriram como num filme de terror. Rapidamente, agarrei meu telefone que se encontrava ao meu lado para conferir o horário: 06:59h da manhã. Ah, não... Não era possível que, pela segunda vez, em menos de uma semana, isso se repetisse. Eu certamente deveria procurar um médico. Alguma coisa muito esquisita ameaçava me assombrar. E, essa coisa, era composta por inúmeras letrinhas que agrupadas formariam um texto. Não houve jeito. Levantei-me. Sem muita contradição, repeti todo aquele ritual até estar agora aonde estou: no quarto de trás, em frente ao computador.
Talvez, tamanha ansiedade se deva ao fato que provocou uma confusão em minha vida nos últimos dois dias: a enrascada profissional a que fui submetida. Talvez não. Talvez seja só essa maluquice toda de voz pra cá, voz pra lá, sentimento pra cá, sentimento pra lá. A questão é: tenho que resolver isso e, a única maneira que encontrei até o momento foi escrever.
Era uma tarde de quarta-feira e eu estava em casa. É realmente um luxo para nós, que somos meros trabalhadores, nos encontrarmos em casa numa tarde no meio da semana. Pois bem, era exatamente aonde estava. E, melhor! Estava deitada ao lado de Maria, olhando para o teto do meu quarto – como numa tentativa de conexão com os céus – e jogando conversa fora. Uma delícia! Foi nesse exato momento que o telefone tocou. Olhei no visor, mas não identifiquei o sujeito que se encontrava do outro lado da linha. Bom, melhor atender:
-       Alô.
-       Flora?
-       Isso.
-       Oi, Flora! Aqui é o Fernando. Tudo bem? Tem uns minutinhos para mim?
O Fernando era um cara com quem eu já havia trabalhado antes e uma pessoa pela qual nutria um carinho enorme:
-       Fernando! Que maravilha! Como você está? – sem deixá-lo responder, continuei já imaginando o que estaria por vir – Diga. Posso falar sim.
-       Então... – “Então” é F...! Me desculpem vocês, mas quem começa um papo com “então”, certamente tem muito a dizer! – ...já sei que você está acabando um trabalho agora e queria muito que viesse fazer parte da equipe que eu estou montando para um novo projeto. Olha, você pode começar hoje mesmo. A gente vê a sua situação no outro produto e tal, e, aí, você já vem logo. Vai ser super legal, a equipe está ótima. Estou mexendo em alguma pessoas e o programa vai ser incrível. A gente vai ser muito feliz! Vamos gravar dias ...
E, ele, engatou a primeira, a segunda, a terceira, a quarta, a quinta. Teria engatado a sexta, se desse. Não parava de falar. Confesso, que num determinado momento do discurso, meus ouvidos cerraram-se para sua voz e a única coisa que começou a trabalhar, freneticamente, foi a minha cabeça.
-       Aham.
Soltava algumas expressões dessas no meio de edição pra cá, reunião pra lá, férias a tirar, etc... Até que uma frase dele me chamou a atenção:
-       Poxa, eu já estou tentando te trazer há o maior tempão e as agendas nunca se encaixaram. Agora vai dar!
Putz, ele não estava sabendo... “... vai dar” não:
-       Fernando, escuta. Estou achando ótimo o seu convite. Desde já, muito obrigada mesmo pela confiança e tal, mas, tem um probleminha: eu já me comprometi com outra pessoa para o mesmo período de trabalho e,
-       Não... Relaxa... Não tem problema não. Isso a gente resolve. Me diz: qual você prefere?
Ai, meu Deus! Aí não! Não faz uma pergunta dessas que você me quebra:
-       Hum, faz o seguinte, quem tem que resolver isso sou eu mesma. Me dá vinte e quatro horas para eu pensar.
-       (tempo) Tá... Beleza. Vou ficar esperando a sua ligação amanhã.
Maria, que ao meu lado e durante toda a ligação, não parou de fazer gestos do tipo: “E, aí, é coisa boa?”, “Quem é que está falando?”, “Você vai?”, finalmente me encarou implorando por uma resposta às suas inúmeras perguntas:
-       Sei lá. – respondi – Tenho que ir pro pilates!
-       Flor, como assim? Me conta! Não vai saindo assim. Você nem me falou que tinha pilates!
Enquanto colocava uma roupa confortável e ajeitava minha bolsa, Maria foi me seguindo, querendo saber tim-tim por tim-tim da ligação. Desci as escadas, entrei no meu carro e parti. Na verdade, eu realmente tinha aula de pilates em vinte minutos. Eu só havia esquecido de comunicar à Maria... Agora, o pior era que eu só tinha vinte e quatro horas para decidir o meu destino nos próximos muitos meses!
Bom, a coisa mais sensata a se fazer numa enrascada dessas é... Hum... Sei lá... Não consegui descobrir. Mas, naquele momento, eu só queria ir para a minha aula e pensar, pensar, pensar...
No caminho, liguei para o Mateus. Ele, certamente, saberia me auxiliar:
-       Oi, amor! – ele atendeu.
-       Você não vai acreditar no que acabou de me acontecer!
E, comecei a contar tudo bem no tim-tim por tim-tim que Maria gostaria de ter ouvido. Falei, falei, falei, estacionei o carro, peguei minha bolsa, andei, andei, andei, falei mais um pouquinho, peguei o elevador, andei, andei, toquei a campainha, cumprimentei minha professora, falei mais e mais, até que meu marido se manifestou:
-       Putz, que parada, hein? Não sei o que te dizer não.
Desliguei o telefone. Estava perdida. A decisão seria só minha.
Durante a aula, ao som de magníficos “Noturnos” de Chopin, tentei ouvir a voz. É, aquela voz! Mas, ela, nada falava. Parecia ter sumido. Fiquei muito “P” da vida! Como ela ousa desaparecer bem no momento que eu mais preciso dela? Olha, mas eu fiquei tão chateada que minha sensível professora resolveu me liberar quinze minutos antes da aula acabar tamanha era minha inquietação e desconcentração.
Peguei minhas coisas e fui em direção ao meu carro. Mas, que carro? Droga! Aonde estava meu carro?
O fato é que quando eu o estacionei, estava no meio de uma conversa tão intensa ao telefone com Mateus que nem prestei atenção nesse detalhe. O maior problema é que o lugar em questão era um shopping gigante, ao ar livre.
Decidi olhar alguns lugares aonde eu costumo estacionar. Nada... O meu querido companheiro não se encontrava em nenhum deles. Fui até o balcão de informações do shopping. Duas mulheres se encontravam lá. Estavam muito ocupadas: a mais nova parecia super entretida fazendo um mega penteado na outra senhora. Enquanto esta, lia uma revista semanal de R$0,99 com “Todas as notícias mais quentes do mundo das celebridades!”. Uhul! Que máximo!
-       Oi. Boa tarde! Eu perdi o meu carro.
Elas pararam o que estavam fazendo e me olharam com uma cara do tipo “E eu com isso?”. Prossegui.
-       E, sendo assim, preciso de ajuda para encontrá-lo.
A senhora largou sua diversão de lado e discou no telefone. Do outro lado, alguém atendeu. Ela emendou:
-       Klebe, tem uma madama aqui que não sabe onde estacionou os carro. Ela tarra quereno uma ajuda. Cê pode vim aqui?
Definitivamente, eu estava perdida. Já podia imaginar que seria uma aventura. Ao desligar, ela olhou para mim e disse:
-       A senhora aguarda uns momento que o rapaz ta vino.
Ok. Melhor não discordar. A atitude mais acertada seria confiar na eficiência de sua comunicação mesmo que ela não tenha me passado a confiança que eu precisava naquele momento.
Eis que surge “Klebe”, a bordo de seu Segway. De acordo com a descrição da Wikipédia, o “Segway PT é um meio de transporte de duas rodas inventado por Deam Kamem (...), que funciona a partir do equilíbrio do indivíduo que a utiliza (...). Para que o Segway PT avance, o indivíduo só precisa se inclinar para frente e para que recue é necessária a inclinação para trás”. Pois bem, “Klebe”, sem saber operar direito tamanha invenção tecnológica, chegou até mim depois de percorrer um longo percurso se inclinando pra frente e pra trás, pra frente e pra trás:
-       Boa tarde! É a senhora que perdeu o carro?
-       Isso. Sou eu mesma. Não tenho idéia de aonde posso tê-lo estacionado.
-       Sem problemas, senhora. Vamos procurar!
As cenas a seguir foram tão patéticas que decidi poupá-los do sofrimento de vivenciá-las através das palavras. Elas se resumem, basicamente, em “Klebe” frenético a bordo de seu super Segway, andando em zig zags pelos corredores do estacionamento e uma adorável menina, em trajes esportivos, tentando o acompanhar pelo solo e gritando “Peraí, seu Klebe!”.
Depois de mais ou menos uma hora, achamos meu companheiro largado, em cima de um canteiro do estacionamento subterrâneo. “Klebe”, indignado, concluiu:
-       Mas, a senhora não lembra nem que subiu as escada?
Pois é, não lembrava... Sem mais palavras, entrei em meu carrinho e voltei para casa.
Algo, no fundo do meu coração, dizia que seria melhor eu aceitar o convite feito por Fernando, mas o meu lado racional aliado ao meu bom caráter, não permitiam tal decisão. Afinal, eu já havia me comprometido com outra pessoa e, com certeza, seria muito bom também. Pronto. Era isso. Manteria minha palavra. Estava decidida e não voltaria atrás.
Me acalmei com a decisão tomada e até que dormi bem nessa noite. Não tive sonhos esquisitos, nem rolei pela cama. Acordei ótima e iniciei o meu dia na certeza da escolha feita.
No início da tarde, algumas horas antes das vinte e quatro horas se completarem, meu telefone tocou. Era a Beta, uma grande amiga do trabalho, que trazia novidades:
-       Fló, é o seguinte: o Zé comentou hoje que não vai dar pra trazer você mais não. Parece que tem uma outra pessoa que tem que vir no seu lugar e tal...
-       Sério?
Zé é a pessoa com a qual eu já havia me comprometido e com a qual havia decidido trabalhar. Contei para a minha amiga a situação que havia se formado e ela emendou:
-       Seu santo é forte, hein!
-       E bota forte nisso!
Corri para encontrar o Zé e resolver logo essa questão. Precisava ter certeza de sua liberação para seguir em frente. A conversa foi ótima e tudo ficou resolvido. Ao sair, peguei meu telefone e disquei:
-       Fala, Flora – a voz do outro lado carregava um desânimo descomunal.
-       A proposta ainda está de pé?
Fernando soltou uma gargalhada imensa, seguida por um grito de alegria! Ficamos horas no telefone. Traçamos planos e estratégias para o ano de trabalho que se apontava em nossa frente. Terminamos na esperança de que “Seremos felizes!”.
Agora, ao concluir esse texto, consigo enxergar, perfeitamente, que a voz que tanto procurei, xinguei e clamei, nos últimos dias, nunca esteve tão perto de mim. Ela não só tocou meu coração, como, com seus braços, abriu os caminhos para que a escolha certa se concretizasse. Nada tenho mais a fazer além de agradecer. E, é isso que farei para encerrar esse post:
-       Muito obrigada!

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A Camisola



-                Pior você, que vai dormir com essa camisola toda rasgada…
         Foram exatamente essas dez palavrinhas mágicas, entremeadas por uma vírgula, bastante pontuada por sinal, que me fizeram escrever esse post. O sujeito que as lançou com todas as forças em cima de mim foi meu adorável marido, Mateus.
         Confesso que o “Pior você,...” não me afetou nem um pouco. Ao contrário: me instigou a provocá-lo também. Estou acostumada com implicâncias rotineiras por parte dessa pessoa, principalmente na hora de dormir. O bom é que elas sempre vêm recheadas de gargalhadas, cosquinhas e afins. Mas, dessa vez, quatro das dez palavras embaladas por sua voz, quase me fizeram ter um ataque! E dos bons! Adivinhem quais foram elas! (tempo) Exatamente! “...essa camisola toda rasgada...”
         Definitivamente, não sou uma mulher “largada”. Me visto bem, me cuido e gosto de enxergar um resultado satisfatório em todos os espelhos que passo ao longo do dia, a começar pelo do meu banheiro, o do closet, o do retrovisor, o dos camarins, etc... Isso, pra não falar dos malditos espelhos dos shoppings e elevadores – vamos combinar que esses são os piores! Até o reflexo do reflexo de espelhos ou de qualquer outro objeto enquadrado na mesma categoria de luminância me puxam ferozmente como um imã. É algo que não consigo controlar. E, para sofrer o menos possível, procuro estar bem sempre!
         Depois de ler este último parágrafo, vocês devem estar se perguntando aonde uma mulher vaidosa como eu estava com a cabeça ao colocar uma camisola “toda rasgada” – na percepção de Mateus – para dormir com seu marido. Ataque de loucura, certamente! E, ele, tinha toda a razão em reclamar. Engano de vocês! A questão toda, que vai desconstruir esse pensamento é baseada na simples premissa de que a camisola que eu vestia não era uma camisola qualquer. Ela é “A” camisola! Com “A” maiúsculo!
         Era setembro de 1993, e eu estava prestes a completar dez anos. Os amigos já comentavam pela escola, pelo balé, pelo inglês, pela natação... Em qualquer lugar que eu fosse,  fazia questão de lembrá-los que uma data muito especial se aproximava. E essa celebração começava quando ainda estávamos em julho, afinal, dois meses é tempo relativamente suficiente para comemorar uma data tão especial assim: o meu aniversário!
          Nessa idade, a fase que antecede o nosso dia é esperada, impacientemente, da forma mais sublime e, nesse ano, não seria diferente. Ficava contabilizando quantas pessoas iriam na minha super festa e, baseada nessa conta, já imaginava a quantidade de presentes – sim, porque o indivíduo que chega numa festa de aniversário sem presente deveria ser barrado na porta por “seres preocupados com a felicidade alheia”. No caso, a minha!
          O vestido e o sapato eram escolhidos da mesma forma como uma noiva escolhe seu traje para caminhar na nave da Igreja. Fechava os olhos, antes de dormir, e me via deslumbrante, em minha festa de aniversário, sendo abraçada por todos, sendo acarinhada, sendo celebrada e admirada! Sem sombra de dúvidas, os meus amiguinhos iam querer ser “eu” naquele dia, e, algumas horas depois, comentariam cada detalhe da inesquecível noite ao meu lado! Foi, baseada nessa filosofia, que comemorei todos os meus aniversários com lindas festas, nos primeiros onze anos de minha vida: a filosofia de ser a mais importante, pelo menos, uma vez no ano!
          Os presentes eram, em sua maioria, entregues durante a festa, mas, sempre tinham umas pessoas que resolviam te dar um dinheiro uns dias antes para você comprar o que quisesse. Foi, exatamente, o que uma querida tia resolveu fazer nesse ano: me deu uma quantia qualquer – a qual já não me lembro, pois ainda era a época do “cruzeiro real”, minha gente! – e falou:
-                Compre algo bem lindo pra você! Depois eu quero ver, tá?!
          Peguei aquele dinheiro e dei pra Maria guardar até que eu encontrasse algo assim “bem lindo” pra comprar. Ficava pensando o que acabaria sendo essa encomenda tão especial. Sim, porque em alguns dias eu já haveria de ter decidido e ela repousaria linda, como adjetivada pela sua encomendadora, em meus braços.
          Fui ao shopping, algumas vezes, entre a aula de inglês e a aula de balé, ou entre a aula de jazz e a aula de sapateado, sempre acompanhada de Maria. Andávamos, andávamos, andávamos mais e mais ainda e nada. Nada que eu via era assim “bem lindo”. Não havia brinquedos nem outros artefatos que eu achasse para se enquadrar em tamanha recomendação. Desisti. Havia de ser algo realmente “bem lindo”. Tentaria, novamente, num outro dia... Frustrada e um tanto intrigada, retomei a minha rotina, sempre com aquela expectativa atrás da orelha: que presente seria esse “bem lindo” que eu mesma haveria de escolher?
          No dia seguinte, ao sair da escola, fomos ao banco, no Largo da Freguesia. Esse local era repleto de camelôs e, como toda criança consumista, não desgrudei os olhos de um objeto sequer que cruzasse minha trajetória. O “meu” haveria de estar em algum lugar próximo e eu não poderia deixar escapar nada. Maria cismava em reclamar:
-                Vamos, Flor, anda logo! Outro dia, a gente volta com mais tempo. Hoje não dá!
          Era triste, mas era como deveria de ser. Cabisbaixa, fui seguindo-a em direção ao carro até me deparar com “ela”: “A” camisola!
          Repousada sobre um corpo imóvel, lá estava ela, linda a me encarar. Ela era cinza com rajadas de branco, e tinha em seu centro um lindo jardim, como numa pintura de Monet. Abaixo das flores, levava os dizeres: “My Beautiful Garden”. Meu coração se encheu de alegria! Sim, era ela o presente “bem lindo” que eu estava procurando.
           Corri para dentro da loja, com Maria ensandecida vindo atrás, e catei a primeira vendedora:
-                Ei, moça! Eu quero ver aquela camisola ali! – a educação ficou totalmente de lado por esse momento.
-                Pra você? – que pergunta idiota, pensei. É óbvio que era para mim!
-                Sim, pra mim.
-                Ah, pra criança não tem não. Só pra adulto.
-                Mas, eu quero mesmo assim. – finalizei, decidida.
           A moça olhou para Maria como num gesto de incerteza em relação a atitude insana que estava prestes a ser executada. Maria assentiu com a cabeça. Era por isso que eu gostava tanto dela. Ela era minha cúmplice favorita!
           Enquanto Maria efetuava o pagamento no caixa, eu fiquei observando a moça embalá-la.
-                É pra presente? – perguntou.
-                Sim, pra presente!
           Abri um sorriso enorme, já me imaginando rasgando sua embalagem depois de minha festa e estreando-a como a noiva estréia a sua camisola na noite de núpcias.
           O dia do meu aniversário transcorreu cheio de felicidade. Mas, apesar disso, foi a primeira vez que torci para minha festa acabar rápido. Queria chegar logo em casa e colocar minha camisola, em meu ainda minúsculo corpo, para dormir.
           Lembro que, durante a festa, minha tia veio até mim e perguntou:
-                Conseguiu comprar algo bem lindo?
-                Sim! – respondi, extremamente feliz com a tarefa confiada e magistralmente cumprida.
          A sensação que tive ao vesti-la foi a mesma que experimentei ao colocar meu vestido de casamento pela primeira vez. Fiquei minutos me admirando no espelho. Dançava, saltava, fazia ela girar como uma saia de baiana. Gargalhava junto a Maria que cantava fados portugueses para me embalar naquela brincadeira.
          Ontem, quando coloquei-a para dormir, me olhei no mesmo espelho que havia me feito tão feliz há dezoito anos atrás. Ela já não bate mais na minha canela, afinal de contas, eu cresci. Começa linda no meio da minha coxa e vai subindo com o seu encantador jardim até o meu pescoço. Desgastada pelo tempo e pelo uso, ela tem sim alguns furinhos bem pequenininhos. Mas, não são quaisquer furinhos. São furinhos de quem me acompanhou por mais de metade da minha vida. Quantas vezes já choramos e já rimos juntas. Quantas vezes ela já foi minha única companheira.
          Por tudo isso, quando Mateus, ontem, jogou essas palavras impróprias para cima dela, quase tive uma síncope. Respirei fundo e resolvi contar essa estória de parceria e cumplicidade para ele.
           Ao fim de toda essa ladainha, ele me fitou e, como eu esperava, completou:
-                Você nunca esteve tão linda!
            Isso, eu já sabia.
Esse era o meu Mateus... E essa é a minha camisola!

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Amigos


Definitivamente, não foi aquela voz que me fez levantar hoje da cama, às sete da manhã, como num impulso enlouquecido para escrever. Fui eu mesmo. Meus olhos se abriram tão decididos a não se fechar mais que provocaram em mim uma sensação jamais experimentada antes: a da necessidade de escrever.
           Quem me conhece sabe bem o quanto é sacrificante para mim começar o dia antes das onze da manhã. Sou notívaga. Muito mesmo. Se pudesse estabelecer um horário certo para estar acordada diariamente, ele seria de onze da manhã às três da manhã do dia seguinte. Dormiria de três às onze e tudo seria muito mais fácil para mim. Já que, na rotina capitalista, nem sempre posso dormir ou acordar quando meus olhos mandam, essa já seria uma boa alternativa.
O fato é que, estranhamente, saltei da cama quatro horas antes do combinado. E o mais interessante: tinha um objetivo claro a cumprir. Em passos silenciosos, peguei o computador, admirei o meu amor a dormir e fui para o quarto de trás escrever.
Vocês devem estar curiosos para entender o que me provocou tamanha comichão literária. Pois bem: foi a incrível marca de cinco amigos, seis horas e quarenta e oito minutos de análise – não minha, deles –, três telefonemas, um encontro casual, um encontro marcado, uma mensagem do Facebook, dois torpedos, uma Neosaldina, dois alfajores argentinos e quatro horas a menos de sono. Coragem? Vamos lá!
O dia de ontem começou com o telefonema de Maria. Como sempre, temos o hábito de nos falarmos pela hora do almoço. A conversa não costuma passar de cinco minutos, mas, dessa vez, durou oitenta e dois. Ela chorou, desabafou, chorou de novo, desabafou, chorou mais ainda e, por aí, foi... Dividida entre a vontade de levar uma vida normal e o enclausuramento no lar, tem tido momentos de grande depressão. Conversamos bastante e ela pareceu desligar o telefone mais decidida a encarar a missão que a está sendo confiada: cuidar de sua mãe de 97 anos na fase final de sua vida terrena. Saldo: a sensação de que o dia seria longo para meus ouvidos...
O segundo encontro foi uma surpresa. Escondida entre as araras de uma loja que eu não entro nunca – na verdade, que eu nunca havia entrado – estava uma grande amiga a qual não tinha notícias há quatro meses. O nosso último encontro, para um breve café que durou mais ou menos umas cinco horas, foi em outubro de 2010 e, desde então, nossas agendas não haviam mais se encontrado. 
Entre dois vestidos em meus braços e um sapato em suas mãos, as palavras correram soltas – dela, não minhas. Fui atualizada, com direito a longas risadas e alguns momentos de dúvida, de todo o tormento profissional que vem a afligindo.  Meus ouvidos e o de todas as vendedoras da loja agradeceram tamanha extroversão. Ela é realmente muito divertida! Falei o que achava – pouco, quando ela deixava –, ajudei-a a perceber o caminho de sua profissão de atriz por outros aspectos e percebi que ela saiu decidida a provocar  uma favorável revolução em sua vida. Saldo: 47 minutos de consulta + 32 minutos de atraso para o próximo compromisso + dois vestidos que estavam na promoção – R$248,00 na conta bancária + uma amiga feliz e confiante na mudança positiva.
Ao sair da loja, meu telefone se manifestou. Peguei-o em minha bolsa e sua tela iluminada continha uma linda declaração de amor de uma bela amiga que nos visitou no fim de semana. Dizia assim:
“Tão bom, mas, tããããão bom estar com vcs... Não pode demorar tanto assim pra encontrar de novo!!! Amo muuuuuito esses dois!!! Beijocas e ótima semana!!!”
Abri um sorriso de orelha a orelha. Pra confessar, acho que até uma pequena gargalhada saltou lívida de minha garganta. Respirei feliz e toquei o meu dia.
Uma hora depois, no trânsito caótico em direção ao trabalho, meu telefone cantou de novo. Era uma outra amiga muito querida que ligava, prá lá da ponte Rio-Niterói, ávida por contar as novidades que vinham ocorrendo em sua vida de casada. Ela falou, falou, falou, falou mais e mais um pouquinho. Tinha diversas dúvidas quanto a que decisão tomar em certas situações, quanto a aceitar ou não uma mudança brusca que batia à sua porta, dentre outras indagações. Entre os meus “aham”, “também acho”, “é, pode ser”, “com certeza” e similares expressões, ela foi chegando a todas as conclusões que precisava. Satisfeita e encorajada, resolveu desligar o telefone após 97 minutos de ligação. Saldo: um telefone sem bateria, duas orelhas quentes e cansadas, 46 minutos de atraso para começar a trabalhar, um editor enfurecido me esperando e outra amiga extremamente feliz e confiante!
Nos 5% finais de bateria do meu telefone, entrei no Facebook para me inteirar dos comentários dos meus amigos ao longo do dia. Já era tarde na ilha de edição quando me deparei com a seguinte publicação em meu mural:
“Tô com saudade de vc!!!”
Esse recadinho alimentou a minha noite faminta por um belo lanche e cansada de um editor chato que insistia em não parar de falar. A importância desse gesto era simples: ele foi mandado por uma de minhas melhores amigas que, há quatro meses, abandonou tudo por aqui – depois de centenas de encontros e ligações telefônicas acerca do assunto – e resolveu trabalhar em Nova Iorque. Foi como senti-la aqui, bem pertinho, me ligando ou me abraçando e falando isso ao meu ouvido. Tomada por imensa felicidade, levantei de minha cadeira giratória, me dirigi até a porta da ilha, e, sem nem me despedir do cara que insistia em não parar de falar, tracei uma reta e fui embora.
Antes de passar na catraca em direção ao estacionamento, uma preocupação súbita me tocou. Um grande amigo parecia estar em apuros sentimentais nas redondezas, a poucos metros de mim. Com apenas 3% de carga restante em meu iPhone, procurei o seu nome e o toquei. Foram apenas duas chamadas até que eu ouvisse a sua voz:
-                     Oi... – O tom era extremamente chocho. O pressentimento parecia certeiro.
-                     Oi! Tudo bem? Que voz é essa? Aconteceu alguma coisa?
-                     Aconteceu.
A afirmativa foi clara o bastante para eu entender que ele precisava urgentemente de ajuda:
-                     Está por aqui? – perguntei, já me preparando para uma mudança nos meus planos.
-                     Aham.
-                     Ok. Estou indo praí.
Dei meia volta e fui em direção a ele. Foram exatas duas horas e sete minutos de conversa ininterrupta. Sentados de frente um para o outro, ouvi-o falar. Os problemas eram tantos e se confundiam de tal maneira que eu não encontrava frases para confortá-lo. Ele, sozinho, com a ajuda apenas do meu firme olhar, foi chegando às suas próprias conclusões. A única coisa que pude falar, inspirada em versos de Chico Buarque, segundos antes de nos levantarmos e irmos embora, foi: “ Amanhã vai ser outro dia”. Era o máximo que conseguia soltar depois de tanta frustração.
Ao nos despedirmos com um abraço bem apertado, falei: “Você é uma pessoa linda! Tem uma luz enorme! Tudo vai dar certo, acredite!”. Parecia um discurso ensaiado, mas foi exatamente o que tive vontade de falar ao sentir seu coração próximo do meu. Saldo: uma ansiedade enorme em vê-lo bem e uma pontinha de dor de cabeça que avançava a passos largos.
Entrei em meu carro e fui para casa. Já era tarde da noite e meu marido me esperava. Eis que meu outro telefone celular toca. Era minha mãe. Dessa vez, a que me colocou no mundo. Aí, foram mais cinqüenta e sete minutos de análise. Durante essa consulta, deu tempo de chegar em casa, dar um abraço no marido, tirar minha calça jeans e colocar um shortinho mais confortável, ouvir meu marido diversas vezes falando “Pô, Mô, desliga logo!”, subir e descer as escadas umas oito vezes – não consigo ficar parada enquanto falo ao telefone - e assistir o mesmo companheiro preparando um jantarzinho para mim enquanto minhas duas cachorras pulavam frenéticas com sua bolinha implorando por um pingo de atenção.
Foi depois de uma crise de choro que ela pediu para desligar. Em outras circunstâncias eu até impediria tal ato até que percebesse que ela se sentisse melhor. Mas, depois de cinco consultas ao longo do dia, uma dor de cabeça infernal e três seres implorando por atenção, achei melhor concordar com ela e encerrar a ligação.
Após acalmar os ânimos do lar, resolvi tomar uma Neosaldina. Foi nesse momento, que deitando para assistir um pouco de TV, me deparei com uma caixa de alfajores argentinos presenteados por uma amiga que acabara de passar uns dias em Buenos Aires. Não resisti e como num ataque de gula, devorei dois. Resolvi não ficar com peso na consciência por ter estragado a minha dieta. Eu, definitivamente, merecia!
Realizada e satisfeita pelo dia cumprido com louvor, fui invadida por uma felicidade sedimentada em bases de amor. Fechei os olhos e adormeci “como um anjo”, nas palavras de Mateus. Acordei, seis horas depois, com uma fileira de amigos passando por minha cabeça: amigos do “jardim de infância”, amigos da “escola”, amigos “primos”, amiga “irmã”, amigo “namorado”, amigos do “trabalho”, amigos “família”, amigas “mães”, amigo “pai”, amigos “família do marido”, amigos “famílias dos amigos”, amigos do “teatro”, amigos do “balé”, amigos da “casualidade”, amigos “achados”, amigos “animais” e por aí em diante. Todos iam passando como num grande desfile de carnaval. Me olhavam felizes e eu retribuía essa felicidade.
A forma que encontrei para externar tamanha realização foi abrindo meu piano e tocando uma música que compus para meu pai, alguns dias antes dele partir. Sua letra é tão pura que se encaixa perfeitamente em qualquer amizade verdadeira. A parte que ele decorou e cantou para mim segundos antes de ir embora, diz o seguinte:
“Eu quero sentir seu abraço, ouvir sua voz sempre
Esqueço das coisas da vida,
Do que não me agrada quando eu estou com você,
Pois pra mim não há sol sem te ter...”
           Entoada por essa simples melodia, meu coração se encheu de esperança e alegria, e a vontade de escrever se aflorou, mais uma vez, na certeza de que ter amigos é o que abastece meu dia-a-dia...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A vez de Serena


O nascimento desse post foi motivado pelo laço mais sublime da humanidade: a amizade. Na verdade, ele nasceu pela imposição daquela voz que, volta e meia, cisma em aparecer. Ela foi tão categórica ao me mandar cancelar meus compromissos do dia e ir para casa escrever, que só restava obedecer.
           No caminho até minha cama, aonde agora me encontro sentada em frente ao computador, algumas músicas e imagens se apresentaram para mim, dentre elas: “Chocolate” na voz de Marisa Monte, “Human Nature” por Michael Jackson, a praia com sua água cristalina e um menino de 2 anos que ao passar pelo portão da minha casa que se abria para minha entrada, parou para tentar descobrir que universo era aquele que rondava ali dentro... O universo da dúvida, pensei. Não que fosse esse o emblema da minha rotina, mas naquele momento era: “Por que raio essa voz quer tanto que eu vá para casa escrever? Não há nada em minha mente, nada interessante o suficiente para ser dito”.
           Entrei em meu lar com o pensamento longe. Falei com a moça que trabalha na minha casa sobre alguma coisa que já não me lembro... Putz, deve ter sido sobre o dinheiro da passagem... Melhor eu procurá-la. Mas, agora não! Agora é hora de escrever! O fato é que ao subir as escadas, antes de encontrá-la, uma foto surgiu triunfante, pairando pelo ar, até o encontro com meus cabelos, meu nariz, meu joelho e, finalmente, o chão:
-       Encontrei essa foto junto com suas orquídeas. – falou Dila.
-       Encontrou essa foto junto com as minhas orquídeas? (pausa para refletir porque a gente sempre repete a fala das pessoas colocando um ponto de interrogação no final. Pura perda de tempo....)
-       Sim. Encontrei essa foto junto com as suas orquídeas!
Para se compreender melhor o espanto por tamanho acontecimento, explico que minhas fotos são uma de minhas grandes paixões e, sendo assim, tenho por elas tanto zelo que jamais uma delas poderia se encontrar perdida entre minhas orquídeas. Essa categoria de “perdida” não poderia se enquadrar ao objeto “foto”.
Atirada no chão da escada, depois de ter saltado das mãos daquela moça e ter vindo ao meu encontro, peguei-a com todo carinho e admirei-a. Dila, sem notar a mudança que se reluzia em minha feição, continuou a me indagar sobre assuntos diversos. A partir daí, não lembro de mais nada que falei com ela. Mas, nesse momento, isso já não mais me importa. Chegou a hora de falar de Serena:
Se alguém pudesse adentrar minha alma e invadir meu coração, certamente iria encontrá-la lá, quietinha bem no cantinho, por vezes rindo, por outras chorando escondido.
            Irmãs de coração, crescemos e vivemos juntas cada momento importante de nossas vidas. Filhas de irmãs gêmeas, fomos praticamente criadas por Maria, nossa mãe de coração. Formávamos, assim, o trio da forma de amor escolhida. Serena nasceu três meses e dois dias depois de mim (fato que relatava a todos com o maior orgulho) e fazia questão de deixar claro o quanto éramos parecidas. E éramos mesmo!
            O mais interessante é que, além dessa afinidade indiscutível, os fatos mais marcantes de nossas vidas, não foram os mesmos, mas foram similares. Para começar a entender o que se mostrava em nossos caminhos, é necessário dar um pulo lá atrás: em janeiro de 1992.
           Como de costume, as nossas férias eram passadas na roça. Parte da família de Maria, que veio de Portugal, se instalou numas terras férteis de Teresópolis e lá cultivavam verduras e legumes das mais diversas qualidades. Lembro-me, como se fosse hoje, do quanto corríamos por aquelas plantações. A terra fofa lotada de adubo escorria pelos dedos do pé a cada passada. A água que jorrava das mangueiras nos atingia ferozmente, refrescando nosso corpo suado. Apostávamos corrida na estrada marcada por sapos esmagados por caminhões. Nadávamos nas cachoeiras e colecionávamos girinos nos baldes. Fazíamos da encosta um delicioso escorrega e andávamos em pé na traseira dos caminhões. Éramos as crianças mais felizes do universo!
À noite, antes de dormir, eu pegava um livro cujo titulo era: “A vida na fazenda” e lia suas páginas com histórias sobre os bois, os carneiros e o leite morno extraído da vaca, até ter certeza de que Serena havia adormecido. Fazíamos planos de viver na roça. Compraríamos terras, caminhões e seríamos grandes empreendedoras no ramo. O mês de janeiro passava voando, mas nesse em especial, nossos corações, pela primeira vez, se apaixonaram por outros dois corações infantis.
João e Vicente eram eles. Irmãos com 10 e 11 anos, respectivamente, andavam para cima e para baixo conosco. Serena e João, Flora e Vicente. As duplas estavam formadas. Andávamos de mãos dadas pelos pastos e plantações, fazendo planos de nossas vidas a dois, ou melhor, a quatro. Discutíamos se Mercedez era um tipo de carro ou de caminhão, enquanto amarrávamos coentro e salsinha para despachar na encomenda para o Rio.
O fim das férias era como um romper de sonhos. Havíamos planejado tanto, amado com tanta certeza de que construiríamos tudo aquilo e, de repente, nada. Tudo se esvairava em nossa frente. Era a primeira vez que a decepção nos acometia. Era a primeira vez que sofríamos juntas a perda do grande amor. Era a primeira vez, dentre tantas, que éramos cúmplices do sofrimento alheio.
A vida na cidade sempre seguia frenética. Estudávamos na mesma escola, mas jamais poderíamos ser da mesma classe. Nossa avó era a dona do colégio e, juntar suas netas numa mesma sala de aula, significava ter pais e mães reclamando em seus ouvidos o direito de seus filhos também estudarem conosco. Tudo havia de ser separado entre nós.
O início de ano era um sofrimento. Chorávamos o fato de sermos separadas por exatas quatro horas e dez minutos, diariamente. Os vinte minutos do recreio, passávamos grudadas. Às vezes, com nossos outros primos que também estudavam lá. Principalmente com Chico, nosso mais amado, o qual considerávamos irmão também, e o qual passava todos os fins de semana ao nosso lado. Como adorávamos esse menino! Tanto que não conseguíamos parar de implicar um com outro. Corríamos para a varanda da cozinha da nossa avó, que era voltada para o pátio do recreio e ficávamos lá, olhando os outros alunos, achando-nos extremamente mais importantes que eles e amando os olhares invejosos de todos. Crianças...
Serena e eu saíamos da escola e íamos para a minha casa. Maria nos arrumava para o balé, para o inglês e para a natação. Fazia nossa comida, brincava conosco, auxiliava no dever de casa.
A vida foi passando rapidamente... Nossos sonhos se realizando... Nossa ligação amadurecendo. Meu pai faleceu há quatro anos atrás, após longo sofrimento. Como um artefato do destino, o dela também se foi, exatos três meses e dois dias depois do meu. Fomos pedidas em casamento na mesma noite. Eu já casei. Ela casará em breve. As coincidências são tantas, que ao olhar a vida de uma, percebe-se a vida da outra.
Nossa união é algo tão forte e inexplicável que falar dela traz lágrimas aos meus olhos. Pensar nela me dá paz. A paz que eu sempre procurei. A paz ideal...
Em minha memória, surgiu uma brincadeira de criança que ficou marcada para sempre:
O sol começava a se pôr depois de um dia animado na roça. Terminávamos de colher ramos de salsa, quando num atento olhar dela para mim, percebeu um cílio que havia caído de meus olhos. Sem perder tempo, o capturou. Com ele, adormecido no seu indicador, falou:
-       Segura no meu dedo e faz um pedido.
-       Tá. Mas, dessa vez tem que falar o pedido junto, em voz alta – impus.
-       Hum... Ta bom. – ela titubeou – Quando eu falar já, a gente grita junto o nosso desejo!
Silêncio. Por dez segundos, o nosso mundo parou...
-       Já! – ela gritou.
E, inesperadamente juntas, falamos:
-       Que a gente seja feliz para sempre!
Começamos a rir muito, estranhando tamanha coincidência. Nos abraçamos por curtos segundos e, logo corremos para apanhar as verduras que faltavam ser colocadas no caminhão.
A foto que se encontra em minhas mãos foi tirada nessa tarde de “janeiro de 1992”. Nela, estamos de mãos dadas, bem apertadas, como estivemos sempre em todos os anos de nossas vidas e como estaremos por toda a eternidade. João e Vicente estão ao fundo, rindo espontâneos; observando nossa ligação.
A voz se acalmou. Tudo havia dado certo: eu a havia obedecido e seu recado havia chegado magnífico em minhas mãos. Ou melhor, havia caído dos céus. Dessa forma, a conexão se estabelecia, as palavras ganhavam vida, as memórias entoavam cânticos de amor.
Nesse momento, meu telefone tocou. Em seu visor, as letras que corriam certificavam o caminho certo: “Serena”.
Parei de escrever. Era hora de ouvi-la. Era hora de amá-la. Era hora de ser feliz para sempre!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Dia da Realização


Nos últimos dias, têm surgido em minha mente, idéias para vários textos: primeiro, veio a vontade de falar sobre a felicidade, depois de contar a minha infância. Ontem, a inspiração para escrever sobre o meu pai me acometeu por diversos momentos e só não a executei, pois meu cansaço era tamanho, que meus olhos não conseguiam enquadrar mais nada depois de um exaustivo dia de trabalho.
Mas, hoje, que pensava chegar ao hotel e descrever pelo menos uma dessas minhas aflições literárias, fui tomada por um desejo enorme de retratar o meu dia: “O dia da frustração”. Juro que tentei usar minhas palavras para falar de algo mais interessante, mas estou, nesse momento, tomada por tantas divagações que não vejo outra alternativa senão dividi-las com vocês.
Acredito na energia. Esquisito essa frase, né?! Acredito na energia... Coisa de doido... Pois é, sinto lhes dizer que sou doida mesmo. Espero que tamanha decepção não os faça fechar essa tela e desistir de acompanhar meu raciocínio. Ao contrário, permitam-se desvendá-lo através das próximas linhas.
Bom, estava falando de “energia”. Na verdade, estava dizendo que acredito “na” energia, o que é bem diferente de dizer que acredito “em” energia. A segunda opção, é bem óbvia na sua semântica, visto que, sem qualquer sombra de dúvida, ela existe e é estudada nas suas mais diversas formas. A primeira é um tanto polêmica. Sim, porque, dizer que eu acredito “na” energia é personificá-la na sua forma de existência. Mas, é exatamente assim que a vejo. Explico: na minha pobre imaginação, a Energia é como um Anjo da Guarda, cada um tem o seu – eu acredito nisso, quem não acreditar, sinta-se à vontade para discordar – e, ela varia de personalidade e temperamento de acordo com o seu acompanhante. Se você é uma pessoa rancorosa, triste e infeliz, sua energia também será, pois ela funciona como um espelho ou uma irmã gêmea de seu interlocutor.
Acontece que uma característica interessantíssima acomete nossa querida Energia: ela tem o dom de partilhar com o resto do mundo tudo que vive guardado em seu fiel companheiro. A Energia é composta por um elo que pode se multiplicar quantas vezes for necessário para se juntar com todas as suas irmãs, desde que elas, claro, abram suas portas para essa conexão. Essa conexão, não necessariamente ocorre duplamente. Às vezes, a via é de mão dupla, mas em muitas outras não. Além disso, elas também têm a capacidade de espalhar o que está armazenado nelas pelo ambiente, tornando-o resultado das pessoas que o freqüentam. Mas, por que toda essa divagação em torno desse tema? Muito simples. Porque hoje, a minha Energia quase enlouqueceu... 
Cheguei ao barracão de uma escola de samba, a qual prefiro não identificar, para mais um dia de gravações. O ambiente era degradante e seu cheiro era composto por uma mistura de tinta, cola e maconha. Por todo lado, víamos os trabalhadores fumando, gritando e xingando-se uns aos outros.
Saí do carro, respirei fundo e falei internamente com a minha Energia: “Ok, calma. Eu sei que a barra está pesada pra você, mas agüenta firme. São só algumas horas e logo estaremos em nosso quarto de hotel, descansando e curtindo o ambiente limpo e saudável em que vivemos”. Ela ficou bem chateada, mas não teve escapatória. Tínhamos que enfrentar isso juntas, dando sempre nosso melhor.
A equipe me aguardava e ao chegar para cumprimentá-los e saudá-los com um abraço de bom dia, pude perceber que algumas Energias já estavam um tanto fracas e perdidas. Era claro, que muitas já haviam estabelecido conexão com outras nem um pouco favoráveis.  Era tarde demais para tentar reverter o quadro. As Energias do local tinham se unido e atacado as dos meus amigos. Eles haviam aberto a guarda... Tive a certeza que estávamos perdidos...
O dia transcorreu pessimamente. Coisas simples, que fazemos normalmente, como um belo enquadramento ou um firme movimento da câmera no trilho pareciam impossíveis. Tudo que olhávamos era feio, nada tinha solução para nós. Estávamos entregues a um ambiente nocivo e pernicioso.
Os integrantes do barracão nos tratavam com desprezo e falta de educação. Eram grossos, rudes e não conseguiram exibir sequer um sorriso em nenhum momento do dia. Estávamos lá para filmar a escola deles e exibi-la linda em nosso documentário. A nossa intenção era de embelezar o seu carnaval e mostrar o esforço do conjunto em prol de um lindo espetáculo. Mas, as Energias deles estavam tão viciadas num ambiente de negatividade que qualquer tentativa de demonstração contrária a isso não era bem-vinda. Eles simplesmente não conseguiam enxergar que éramos pessoas do bem, querendo fazer nosso trabalho e valorizar o deles. A sensação que tínhamos era de que eles estavam fazendo um enorme favor em nos receber lá e que nós não merecíamos isso.
Mas, o grande problema disso tudo, foi constatar que as nossas Energias não conseguiam fechar a porta para a deles. Elas entraram com toda a força, deixando-nos consternados, irritados e paralisados. Ninguém se comunicava, mas, ao mesmo tempo, ninguém conseguia perceber o que acontecia ao nosso redor. Por mais que tentássemos, não conseguíamos deixar os takes bonitos. O diretor de fotografia demorava “horas” para iluminar o quadro, o camera man não conseguia achar um bom plano, o áudio dava interferência, e, a mim, faltavam idéias e inspirações. A minha única diferença para eles era simples: eu sabia o que estava acontecendo...
O segundo passo foi lidar com a frustração. Foi ela que invadiu nossos pensamentos desde o primeiro momento. Como encarar um trabalho mal feito? Como aceitar que não conseguimos fazer algo tão legal quanto o feito, anteriormente, nas outras escolas? Olhar para o monitor e não aprovar a imagem que você está dirigindo é algo extremamente frustrante. Mas, fazer televisão é isso: lidar com a frustração de ter que fazer do jeito que der pra fazer. Há diversas coisas envolvidas sempre: dinheiro, tempo, pessoas... Somos peças de uma máquina que não pode parar de funcionar e, para que isso aconteça, temos que abdicar de muitas vontades.
A hora da despedida foi silenciosa. Observava meus companheiros de trabalho guardando seus equipamentos num desânimo contagioso. Tudo estava pesado. Até o ar era mais difícil de respirar... Parecíamos, todos, velhinhos de 90 anos ao fim de uma maratona – emocional, no caso... Dei adeus, na certeza de que aquele dia ficaria guardado em nossa memória para sempre.
Assim que entrei no carro, meu telefone tocou. Era meu marido que, obviamente, notou uma estranheza em minha voz. Contei-lhe um pouco sobre meu dia, mas ele nem titubeou ao descrever o ocorrido. Com palavras encorajadoras, disse:
-       Você não deveria se sentir frustrada.
-       Como não?! Queria ter feito algo muito melhor do que fiz. Estou chateada. Frustrada é a palavra certa. – contrariei.
-       Amor, você tem que sentir orgulho de você mesma. Parabéns. Apesar de todas as adversidades, você fez. E, televisão é isso: fazer um dia após o outro.
Em fração de segundos, tudo mudou. As palavras de incentivo dele me fizeram enxergar algo que havia ficado mascarado dentro de mim. Era isso: a frustração é apenas um lado da moeda; o outro é a realização. A realização do trabalho. E eu havia realizado. Apesar das adversidades, eu havia alcançado o objetivo. A missão era: “fazer da melhor maneira possível, mas, sempre, fazer”. E isso, eu certamente havia feito.
Escolhi passar o resto do dia com a moeda virada para o lado bom: o lado da realização. Já era noite quando, no meio do engarrafamento, a caminho do hotel, resolvi ligar o rádio. A música que tocava me entoou pelas últimas horas desse dia tão intrigante. Seu refrão, na voz dos Beatles, dizia exatamente a única frase que pairava sobre meus pensamentos naquele momento: “It’s been a hard day’s night...”.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Tormento


Tum, tum… Tum, tum… Tum, tum… Tum, tum... 92 batimentos por minuto. Era esse o ritmo em que meu coração seguia no momento em que resolvi abrir o computador e escrever este post. O fato é que ele batia tão forte, que, mesmo em face do temeroso cansaço, me rendi aos meus pensamentos e aflições e tratei de me levantar. E a maneira que escolhi para fazer isso foi acendendo a luz do meu quarto de hotel e desistindo de tentar tirar aquele cochilo forçado. Até porque, são oito da noite e oito da noite não é hora de tirar cochilo nenhum.
Devo estar ficando maluca... Aliás, tem momentos em que a insanidade passa bem pertinho de mim, mas, quando eu digo “bem pertinho” talvez esteja dizendo que ela passa por dentro de mim.
Lembrei de um amigo que tem uma espécie de distúrbio no coração – alô, especialistas no assunto, me perdoem a ignorância! – e que, por causa disso, vive a base de medicamentos para se manter estável psicologicamente no seu dia-a-dia. Descobri isso, há pouco tempo, quando estávamos sonorizando, como de costume, um programa de TV. De repente, ele se manifestou aos berros:
-       Puta merda! Meu coração não pára de bater!
-       Hum? Como assim? - falei sem entender “bulhufas” do tal comentário.
-       Ah, essa merda me atormenta a vida toda! Porra! Não agüento mais!
Ok. Muita calma nessa hora! Certa de que ele devia estar sob efeito de alguma substância tóxica, achei melhor manter-me em silêncio.  Era mais seguro para mim e para ele.
Foi nesse instante que ele deslizou pela parede da ilha de sonorização e caiu em prantos. Corri até ele e, sem saber muito o que fazer, tentei acalmá-lo. Aos poucos, ele foi me contando que o maior problema da sua vida se devia ao fato de ele sentir seu coração pulsar a todo instante, desde o dia em que nasceu e, que isso o atrapalhava de tal maneira que já havia pensado em se matar diversas vezes. Confesso que nesse momento falei internamente: “Não tenta agora não, vai?!”. Fiquei um pouco chocada com todo o drama dele e tentei consolá-lo da melhor maneira que pude. Dá pra acreditar numa história dessas?
Bom, desse dia em diante, não passei mais nenhum sem pensar nisso. Sentir seu próprio coração bater, sem tocar em seu peito? Fiquei quieta por uns instantes e pude perceber que também sentia o meu, mas, muito de leve. Era praticamente imperceptível, bem diferente do caso dele. Você que está lendo isso agora, pode parar um pouco e experimentar essa sensação. Nem esquenta, todo mundo faz isso nessa parte do texto... Permita-se!
No meu dia-a-dia, comecei a prestar atenção em situações similares e pude constatar que, muito de vez em quando, isso acontecia em meu organismo: sentir meu coração pulsar! Endosso a aflição do rapaz no quesito incômodo. Isso é, de certa forma, atormentador quando excessivo e constante. Pois, foi num momento desses que me encontrava há minutos atrás, quando resolvi pular da cama e fazer outra coisa. No caso, escrever pra ver se meu coração “parava de bater”.
É tanta maluquice nesse mundo, tanta coisa esquisita que acontece... A maioria das vezes, não percebemos que pessoas tão próximas podem apresentar problemas tão invisíveis para nós. Foi quando hoje, outra pessoa próxima se manifestou... Eis a estória:
Seguindo na minha saga de trabalhos em Sampa, fui para o aeroporto a fim de embarcar para lá, acompanhada de um grande amigo. Ele é uma pessoa adorável, mas, hoje, em especial, estava bem esquisito... Falava alto e cumprimentava todos a sua volta.
No caminho até o balcão do check in, passamos por um grupo de mais ou menos umas trinta pessoas, que recebiam instruções de um guia do aeroporto. Ele gritou bem alto: “Prestem bastante atenção na aula, hein?!”. O professor, estupefato, parou de falar e todos olharam para o homem que tinha acabado de cometer o ato insano de interromper o meio de uma explicação sem a menor explicação. Nesse momento, tive certeza que meu dia ao lado dele seria conturbado.
Chegamos no check in e ele começou a falar com a atendente de uma forma super íntima, como se já a conhecesse há muito tempo. Elogiou os olhos azuis da moça, a maneira como se portava e respondia às suas questões, entre outros comentários insignificantes – insignificantes para mim, é óbvio, não para ela, que de bonita só tinha os olhos, o resto era assustador. Ela começou a se achar a mulher mais incrível do planeta, sua auto-estima foi nas alturas! No fim do procedimento, de tão eufórica com aquele homem que não parava de elogiá-la e de fazer perguntas indiscretas a seu respeito, concedeu uma certa regalia no tal cartão de fidelidade que ele tinha. Educado, agradeceu dizendo: “Você é muito boazinha!”. Ela, não satisfeita, retribuiu: “Boazinha não! Eu sou boooooooooooa!”. Com o “o” assim mesmo, bem looooooongo... Juro que senti a famosa “vergonha alheia”! Que situação... E ele?! Ele não estava nem aí... “Estava é adoraaaaaando...”.
Saímos de lá e fomos andando para a sala de embarque. No caminho, passamos, de novo, por aquele grupo, que ainda permanecia lá, no mesmo local, atento às explicações do professor. Fiquei tensa! Ele então, “pelas costas do instrutor”, começou a fazer sinais para o grupo, do tipo: “Ele não sabe nada! É tudo mentira! Hahaha! Seu bando de babacas!”. Todos começaram a rir e a aula foi interrompida novamente. Continuei subindo a escada rolante com a minha cara de “juro que não conheço esse maluco!”.
Isso para não falar de situações como a foto com as meninas do balcão da lanchonete – que, pasmem, eu tive que tirar e ele, depois, ficou mostrando pra todo mundo, todo orgulhoso!
Quase perdendo o vôo, depois de tanta enrolação pelo aeroporto, finalmente, entramos no avião. Ufa! Agora ele vai acalmar, né?! Resposta incorreta. Ele piorou! Posicionado no assento do corredor, se meteu até no assunto do jornal que o senhor do banco da frente lia, dando palpites na escalação do Volta Redonda, acredita?! Depois, pegou seu iPad e começou a brincar, em alto e bom som, com um joguinho que tinha uns bichinhos esquisitos que faziam barulhos mais esquisitos ainda – o pior foi quando ele teve a idéia de interpretar as caretas e os grunhidos que os tais seres faziam. Patético! Nessa altura do campeonato, não tinha como eu fingir que não o conhecia...
Como se não bastasse tamanha manifestação eufórica, resolveu ficar, insistentemente, narrando o tal vídeo do you tube da lusitana “Anabela de Malhadas” (Se vocês ainda não conhecem essa pérola, assistam! É realmente engraçado. Muito mesmo!). Ele falava, bem alto: “Anabela, não é dois, não é três, não é quatro, nem é quatro e meio! É mais de quatro quilos e meio. (tempo) Resposta de Anabela: Três quilos e vinte! Hahaha!!!” Por um momento, me arrependi de ter sido eu a pessoa que mostrou esse vídeo a ele, mas, confesso que dei boas risadas com suas imitações. Só gostaria de deixar claro que as risadas eram porque o vídeo era engraçado. Não ele...
Logo depois do avião decolar, começou a puxar papo com todas as aeromoças, até conhecer e se apaixonar por Lígia!
Ligia era realmente linda! Até eu me apaixonei por ela! Sensual, inteligente e muito bem humorada, Ligia era um furacão. A moça, com seu nome e seu encanto pra lá de Nelson Rodriguiano, percebeu que meu amigo estava louco por ela e resolveu dar trela. Esse foi o problema. Ele, após perceber o nítido “mole” que recebia, tratou de falar mais alto, chamando por sua amada insistentemente e apertando o botãozinho para solicitar algo, o tempo todo. Em uma das vezes que ela se aproximou (era fato que ela era bem safadinha e estava adorando a brincadeira), ele mostrou  seu número de telefone, escrito em letras bem grandes, que iam deslizando pela tela do iPad: “Coloquei em cor de rosa, para combinar com seu esmalte”, disse. Hum, foi aí que ela se desmanchou de tesão por ele.
As pessoas ficavam olhando para aquela situação sem entender nada. Quem devia ser aquele doido? Mas, o que mais deviam pensar era, quem devia ser a coitada daquela menina que o estava acompanhando? Pois é, quem devia ser?! Resposta: eu!
Na hora do lanchinho, Ligia chegou bem pertinho dele, jogando todo o seu charme: “Aceita, senhor?”. Ele mal olhou para o sanduíche que ela segurava e, respondendo com uma voz de “cachorrão”, jogou no ar: “O sanduíche não...”. Ela insistiu, mais firme: “Aceita, senhor?!”. Ele mais instigador: “O sanduíche não...”. Ela, como obrigando-o a pegar o alimento de suas mãos, repetiu, pela última vez: “Aceita, senhor!”. Percebendo que deveria cumprir a ordem da moça, pegou o sanduíche. No guardanapo que o acompanhava, vinha escrito o telefone dela. Minha nossa! Que situação! Só então, meu amigo se tocou que havia passado dos limites! Como vocês percebem, há muito tempo!
A azaração persistiu até o pouso. Inacreditavelmente, a moça sentou-se no assento do outro lado do corredor do meu amigo, a fim de aproveitar os últimos instantes ao lado dele até o momento que o avião encostou suas rodas no chão. Ela, então, levantou-se, cheia de risinhos e correu até a parte traseira. No auto-falante da aeronave, ouviu-se a sua voz: “Senhores passageiros, sejam bem vindos à Manaus!”. Manaus? Como assim? Devíamos ter pousado em São Paulo. Nós pousamos, mas, Ligia, definitivamente, não... Tratamos de sair correndo do avião, para evitar maiores constrangimentos (seria possível que eles ainda fossem maiores? Ok, não precisa responder...).
No caminho até o carro, ele me olhou e disse: “Acho que não estou muito bem hoje não...”. Respondi: “Você acha?”. Ele assentiu. Bom, era a primeira demonstração de uma possível melhora.
O resto do dia foi, relativamente, mais calmo. Conversamos e ele se abriu dizendo que além da enorme tensão profissional que parecia o assombrar, estava entrando em depressão por causa de problemas conjugais. Ativei o meu lado de psiquiatra – que, pelo vasto know-how familiar, é super treinado pra lidar com malucos – e, aos poucos, o comportamento do meu amigo foi voltando ao normal.
O fato é que cheguei ao hotel bem desnorteada. Essa história toda mexeu demais com o meu emocional. É triste e, um tanto assustador, ver um grande amigo seu se descontrolar dessa forma. Era impossível achar suas atitudes engraçadas. As pessoas riam, como riem de qualquer desgraça. O ser humano adora ver as tragédias pelo lado positivo. É mais fácil. Eu estava achando tudo patético, triste demais. Ele não havia se drogado nem nada (talvez tivesse esquecido de tomar seu remedinho azul, sei lá...), mas acabou externando dessa forma absurda toda a tristeza e o cansaço emocional ao qual estava sendo submetido.
Tomei um banho e deitei na cama. Liguei a televisão, mas, meus pensamentos estavam longe demais. Resolvi começar a ler o livro do Alain de Botton que trouxe para essa viagem, cujo titulo é: “Uma semana no aeroporto”. Putz, não... Estava “bem” de passagens por aeroportos por hoje. Apaguei a luz e resolvi tirar um cochilo para ver se conseguia retornar ao meu estado normal, tranqüilo, sereno, e acordar como se tivesse tido um sonho um tanto esquisito e incomum. Afinal, nos sonhos tudo é possível...
Mas, minha cabeça não parou... Não havia jeito de acalmá-la. Tudo voltava aos meus pensamentos como num enorme flashback. Foi aí que meu coração disparou: “Tum, tum... Tum, tum... Tum, tum... Tum, tum... 92 batimentos por minuto. Era esse o ritmo em que meu coração seguia no momento que resolvi abrir o computador e escrever este post...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Carta


Hoje acordei com uma vontade danada de não fazer nada. O problema é que ontem também tive essa vontade e, nada fiz. Ah, anteontem também... Na verdade, faz um bom tempo que o fazer nada me assombra. Mas, tudo bem, isso deve ser uma fase e, daqui a pouco, o ritmo frenético do trabalho impossibilitará meu corpo de exercer sua legítima prece do fazer nada.
Depois que comecei a trabalhar na televisão, passei a respeitar esse tipo de vontade. Aliás, passei a respeitar qualquer tipo de vontade e, na medida do possível, cumpri-la. É que o trabalho lá é tão exaustivo, mas tão exaustivo, que qualquer tempo livre passa a ser muito mais valorizado. O domingo de folga é uma dádiva dos deuses, onde cada hora vale uma eternidade e merece ser aproveitada como se fosse a última. Passeios ao lado das pessoas que você ama ou o simples afago mais demorado do marido funcionam como um turbilhão de fluidos que invadem meu organismo a fim de recarregá-lo.
O lado bom são as “entre-safras” – períodos entre os programas de tv em que a vida dá uma acalmada. Sem isso, certamente já haveria solicitado a minha carta de alforria. Pois bem, é numa dessas fases que me encontro agora. Não exatamente uma “entre-safra”, mas um momento em que o que estou fazendo não vem exigindo muito minha atuação e meus pensamentos. Por enquanto...
Tenho acordado quando meus olhos abrem – e, essa, é, certamente, a melhor coisa que me acontece nesses dias de calmaria – e hoje, não foi diferente. Ao contrário da teoria Schopenraueriana, acordo sempre com um excelente humor e costumo seguir dessa forma até a complicada hora de dormir. É que gosto tanto de estar acordada que ter de encerrar o meu dia é quase uma tortura (deixando claro que também divirto-me a beça nas horas de sono, mas ainda assim acho o dia curto demais). Abri os olhos e me deparei com um cartão em minha mesinha de cabeceira. Ele era delicado, todo composto por flores desenhadas à mão, nas cores rosa, cinza e preto. E dizia o seguinte:
Meu anjo,
Hoje comemoramos a data em que reafirmamos, nesta vida, a vontade e o compromisso de unirmos nossas existências com amor. Essa decisão e esse amor são renovados e reafirmados todos os dias e, assim, será para sempre! Obrigado!
Mateus”.
Caramba, é o nosso dia! Como eu poderia ter esquecido uma data tão importante como essa? Nove anos de companheirismo, amor, cumplicidade...
Sentei na cama com os dois pés no chão e falei: “Muito obrigada! Muito obrigada à quem quer que seja que tenha contribuído e que ainda contribua para que esse sonho continue a se realizar a cada dia”. Depois, deitei de novo. É que a vontade de não fazer nada voltava a me acometer.
Peguei meu livro. Estou lendo “Nação Crioula” de José Eduardo Agualusa. Excelente, por sinal. A narrativa te absorve em todas as cartas de Carlos Fradique Mendes. A que estava lendo, datada de dezembro de 1876, contava a história de um Conde e seu manipanso, um boneco esculpido em madeira vermelha, famoso por adivinhar o futuro. Em determinado momento, Fradique escreve o seguinte: “Se é possível, como me dizem que é, transmitir a voz humana a grande distância através de simples fios de cobre, então porque não há de ser possível a um boneco de pau ter visões e falar?!”.  Comecei a imaginar a repercussão que teria uma televisão de led em pleno auge do Império Romano. Seria, para eles, certamente, a manifestação de algum Deus.
Mas, ao mesmo tempo em que me divertia com esse agradável comentário, percebi que aquela mesma manifestação da escrita que demorava meses para cruzar continentes, aquelas mesmas palavras, colocadas por vezes, de forma tão pura, verdadeira e poética, por muitos que já passaram por este mundo e que por aqui continuam a utilizá-la em simples pedaços de papel, repousava ao meu lado direito, bela e silenciosa. Peguei-a novamente e tornei a apreciá-la. Escrita à lápis, vinha tomada de enorme sentimento, de uma luz incendiária. Uma lágrima marcou-a para sempre.
Comecei a pensar em como retribuir o magnífico presente deixado por meu companheiro, a fim de tornar esse dia ainda mais especial. Abri minha gaveta e achei a mesma caixa de cartões da qual ele havia retirado o que me dera. Peguei um lápis e comecei escrevendo a frase que ele me disse ao fim de encostar seus lábios aos meus pela primeira vez: “Você é apaixonante!”
Mas aí, é uma outra história...