Meus olhos se abriram como num filme de terror. Rapidamente, agarrei meu telefone que se encontrava ao meu lado para conferir o horário: 06:59h da manhã. Ah, não... Não era possível que, pela segunda vez, em menos de uma semana, isso se repetisse. Eu certamente deveria procurar um médico. Alguma coisa muito esquisita ameaçava me assombrar. E, essa coisa, era composta por inúmeras letrinhas que agrupadas formariam um texto. Não houve jeito. Levantei-me. Sem muita contradição, repeti todo aquele ritual até estar agora aonde estou: no quarto de trás, em frente ao computador.
Talvez, tamanha ansiedade se deva ao fato que provocou uma confusão em minha vida nos últimos dois dias: a enrascada profissional a que fui submetida. Talvez não. Talvez seja só essa maluquice toda de voz pra cá, voz pra lá, sentimento pra cá, sentimento pra lá. A questão é: tenho que resolver isso e, a única maneira que encontrei até o momento foi escrever.
Era uma tarde de quarta-feira e eu estava em casa. É realmente um luxo para nós, que somos meros trabalhadores, nos encontrarmos em casa numa tarde no meio da semana. Pois bem, era exatamente aonde estava. E, melhor! Estava deitada ao lado de Maria, olhando para o teto do meu quarto – como numa tentativa de conexão com os céus – e jogando conversa fora. Uma delícia! Foi nesse exato momento que o telefone tocou. Olhei no visor, mas não identifiquei o sujeito que se encontrava do outro lado da linha. Bom, melhor atender:
- Alô.
- Flora?
- Isso.
- Oi, Flora! Aqui é o Fernando. Tudo bem? Tem uns minutinhos para mim?
O Fernando era um cara com quem eu já havia trabalhado antes e uma pessoa pela qual nutria um carinho enorme:
- Fernando! Que maravilha! Como você está? – sem deixá-lo responder, continuei já imaginando o que estaria por vir – Diga. Posso falar sim.
- Então... – “Então” é F...! Me desculpem vocês, mas quem começa um papo com “então”, certamente tem muito a dizer! – ...já sei que você está acabando um trabalho agora e queria muito que viesse fazer parte da equipe que eu estou montando para um novo projeto. Olha, você pode começar hoje mesmo. A gente vê a sua situação no outro produto e tal, e, aí, você já vem logo. Vai ser super legal, a equipe está ótima. Estou mexendo em alguma pessoas e o programa vai ser incrível. A gente vai ser muito feliz! Vamos gravar dias ...
E, ele, engatou a primeira, a segunda, a terceira, a quarta, a quinta. Teria engatado a sexta, se desse. Não parava de falar. Confesso, que num determinado momento do discurso, meus ouvidos cerraram-se para sua voz e a única coisa que começou a trabalhar, freneticamente, foi a minha cabeça.
- Aham.
Soltava algumas expressões dessas no meio de edição pra cá, reunião pra lá, férias a tirar, etc... Até que uma frase dele me chamou a atenção:
- Poxa, eu já estou tentando te trazer há o maior tempão e as agendas nunca se encaixaram. Agora vai dar!
Putz, ele não estava sabendo... “... vai dar” não:
- Fernando, escuta. Estou achando ótimo o seu convite. Desde já, muito obrigada mesmo pela confiança e tal, mas, tem um probleminha: eu já me comprometi com outra pessoa para o mesmo período de trabalho e,
- Não... Relaxa... Não tem problema não. Isso a gente resolve. Me diz: qual você prefere?
Ai, meu Deus! Aí não! Não faz uma pergunta dessas que você me quebra:
- Hum, faz o seguinte, quem tem que resolver isso sou eu mesma. Me dá vinte e quatro horas para eu pensar.
- (tempo) Tá... Beleza. Vou ficar esperando a sua ligação amanhã.
Maria, que ao meu lado e durante toda a ligação, não parou de fazer gestos do tipo: “E, aí, é coisa boa?”, “Quem é que está falando?”, “Você vai?”, finalmente me encarou implorando por uma resposta às suas inúmeras perguntas:
- Sei lá. – respondi – Tenho que ir pro pilates!
- Flor, como assim? Me conta! Não vai saindo assim. Você nem me falou que tinha pilates!
Enquanto colocava uma roupa confortável e ajeitava minha bolsa, Maria foi me seguindo, querendo saber tim-tim por tim-tim da ligação. Desci as escadas, entrei no meu carro e parti. Na verdade, eu realmente tinha aula de pilates em vinte minutos. Eu só havia esquecido de comunicar à Maria... Agora, o pior era que eu só tinha vinte e quatro horas para decidir o meu destino nos próximos muitos meses!
Bom, a coisa mais sensata a se fazer numa enrascada dessas é... Hum... Sei lá... Não consegui descobrir. Mas, naquele momento, eu só queria ir para a minha aula e pensar, pensar, pensar...
No caminho, liguei para o Mateus. Ele, certamente, saberia me auxiliar:
- Oi, amor! – ele atendeu.
- Você não vai acreditar no que acabou de me acontecer!
E, comecei a contar tudo bem no tim-tim por tim-tim que Maria gostaria de ter ouvido. Falei, falei, falei, estacionei o carro, peguei minha bolsa, andei, andei, andei, falei mais um pouquinho, peguei o elevador, andei, andei, toquei a campainha, cumprimentei minha professora, falei mais e mais, até que meu marido se manifestou:
- Putz, que parada, hein? Não sei o que te dizer não.
Desliguei o telefone. Estava perdida. A decisão seria só minha.
Durante a aula, ao som de magníficos “Noturnos” de Chopin, tentei ouvir a voz. É, aquela voz! Mas, ela, nada falava. Parecia ter sumido. Fiquei muito “P” da vida! Como ela ousa desaparecer bem no momento que eu mais preciso dela? Olha, mas eu fiquei tão chateada que minha sensível professora resolveu me liberar quinze minutos antes da aula acabar tamanha era minha inquietação e desconcentração.
Peguei minhas coisas e fui em direção ao meu carro. Mas, que carro? Droga! Aonde estava meu carro?
O fato é que quando eu o estacionei, estava no meio de uma conversa tão intensa ao telefone com Mateus que nem prestei atenção nesse detalhe. O maior problema é que o lugar em questão era um shopping gigante, ao ar livre.
Decidi olhar alguns lugares aonde eu costumo estacionar. Nada... O meu querido companheiro não se encontrava em nenhum deles. Fui até o balcão de informações do shopping. Duas mulheres se encontravam lá. Estavam muito ocupadas: a mais nova parecia super entretida fazendo um mega penteado na outra senhora. Enquanto esta, lia uma revista semanal de R$0,99 com “Todas as notícias mais quentes do mundo das celebridades!”. Uhul! Que máximo!
- Oi. Boa tarde! Eu perdi o meu carro.
Elas pararam o que estavam fazendo e me olharam com uma cara do tipo “E eu com isso?”. Prossegui.
- E, sendo assim, preciso de ajuda para encontrá-lo.
A senhora largou sua diversão de lado e discou no telefone. Do outro lado, alguém atendeu. Ela emendou:
- Klebe, tem uma madama aqui que não sabe onde estacionou os carro. Ela tarra quereno uma ajuda. Cê pode vim aqui?
Definitivamente, eu estava perdida. Já podia imaginar que seria uma aventura. Ao desligar, ela olhou para mim e disse:
- A senhora aguarda uns momento que o rapaz ta vino.
Ok. Melhor não discordar. A atitude mais acertada seria confiar na eficiência de sua comunicação mesmo que ela não tenha me passado a confiança que eu precisava naquele momento.
Eis que surge “Klebe”, a bordo de seu Segway. De acordo com a descrição da Wikipédia, o “Segway PT é um meio de transporte de duas rodas inventado por Deam Kamem (...), que funciona a partir do equilíbrio do indivíduo que a utiliza (...). Para que o Segway PT avance, o indivíduo só precisa se inclinar para frente e para que recue é necessária a inclinação para trás”. Pois bem, “Klebe”, sem saber operar direito tamanha invenção tecnológica, chegou até mim depois de percorrer um longo percurso se inclinando pra frente e pra trás, pra frente e pra trás:
- Boa tarde! É a senhora que perdeu o carro?
- Isso. Sou eu mesma. Não tenho idéia de aonde posso tê-lo estacionado.
- Sem problemas, senhora. Vamos procurar!
As cenas a seguir foram tão patéticas que decidi poupá-los do sofrimento de vivenciá-las através das palavras. Elas se resumem, basicamente, em “Klebe” frenético a bordo de seu super Segway, andando em zig zags pelos corredores do estacionamento e uma adorável menina, em trajes esportivos, tentando o acompanhar pelo solo e gritando “Peraí, seu Klebe!”.
Depois de mais ou menos uma hora, achamos meu companheiro largado, em cima de um canteiro do estacionamento subterrâneo. “Klebe”, indignado, concluiu:
- Mas, a senhora não lembra nem que subiu as escada?
Pois é, não lembrava... Sem mais palavras, entrei em meu carrinho e voltei para casa.
Algo, no fundo do meu coração, dizia que seria melhor eu aceitar o convite feito por Fernando, mas o meu lado racional aliado ao meu bom caráter, não permitiam tal decisão. Afinal, eu já havia me comprometido com outra pessoa e, com certeza, seria muito bom também. Pronto. Era isso. Manteria minha palavra. Estava decidida e não voltaria atrás.
Me acalmei com a decisão tomada e até que dormi bem nessa noite. Não tive sonhos esquisitos, nem rolei pela cama. Acordei ótima e iniciei o meu dia na certeza da escolha feita.
No início da tarde, algumas horas antes das vinte e quatro horas se completarem, meu telefone tocou. Era a Beta, uma grande amiga do trabalho, que trazia novidades:
- Fló, é o seguinte: o Zé comentou hoje que não vai dar pra trazer você mais não. Parece que tem uma outra pessoa que tem que vir no seu lugar e tal...
- Sério?
Zé é a pessoa com a qual eu já havia me comprometido e com a qual havia decidido trabalhar. Contei para a minha amiga a situação que havia se formado e ela emendou:
- Seu santo é forte, hein!
- E bota forte nisso!
Corri para encontrar o Zé e resolver logo essa questão. Precisava ter certeza de sua liberação para seguir em frente. A conversa foi ótima e tudo ficou resolvido. Ao sair, peguei meu telefone e disquei:
- Fala, Flora – a voz do outro lado carregava um desânimo descomunal.
- A proposta ainda está de pé?
Fernando soltou uma gargalhada imensa, seguida por um grito de alegria! Ficamos horas no telefone. Traçamos planos e estratégias para o ano de trabalho que se apontava em nossa frente. Terminamos na esperança de que “Seremos felizes!”.
Agora, ao concluir esse texto, consigo enxergar, perfeitamente, que a voz que tanto procurei, xinguei e clamei, nos últimos dias, nunca esteve tão perto de mim. Ela não só tocou meu coração, como, com seus braços, abriu os caminhos para que a escolha certa se concretizasse. Nada tenho mais a fazer além de agradecer. E, é isso que farei para encerrar esse post:
- Muito obrigada!