Já não consigo pensar em nada. Minha mente, confusa com um turbilhão de informações, parou de funcionar. São oito horas da noite e meu dia deve ser encerrado o quanto antes a fim de evitar males futuros. O causador de tamanha catástrofe tem apenas um nome: trabalho.
Acordei às seis e meia da manhã, tomei um banho, me arrumei e fui trabalhar. Essa rotina diária me entediaria tremendamente não fosse o ramo da minha profissão.
Fazer televisão é uma surpresa constante. É se ver obrigado a conviver com risos, choros, broncas e mágoas, um turbilhão de caras feias e um mundo de cobranças. É esquecer do marido, dos filhos, da família e viver num mundo paralelo. Um mundo onde as percepções são distorcidas, os valores distintos e os objetivos passageiros. É sofrer porque o microfone apareceu no quadro, o figurante não passou na hora certa e o ator não consegue dar o texto. O maior dos nossos problemas é não conseguir cumprir o plano de gravação e pendurar cenas e, acreditem, isso pode se tornar o pior dos mundos! Cada pequeno equívoco é encarado numa proporção assustadora: ninguém pode errar! Parecemos neurologistas à beira de um caos cirúrgico!
Além disso, a carga horária é bem pesada: média de onze horas diárias, sendo que dessas onze, dez e meia são em pé, correndo e andando de um lado pro outro, subindo e descendo ladeira, administrando um rádio em cada ouvido, gritando, pedindo silêncio e falando “Ação!”.
É por isso tudo e pelo acúmulo do cansaço semanal, principalmente, depois de uma externa com dois caminhões, um trator, um cachorro, um mar de poeira e setenta figurantes, que me encontro exausta essa noite. Só consigo pensar em dormir. Aliás, só não estou dormindo ainda, pois espero Mateus chegar da academia e, como meus olhos insistem em fechar, resolvi escrever para tentar enganá-los. Ansiosa que estou, não me agüentei e mandei uma mensagem para o celular dele: “Wish you were here with me...”. Tomara que ele desista da academia e corra para meus braços, ou melhor, minha cama...
Mas, apesar de todo esse cansaço, uma sensação muito boa toma conta de mim: a sensação de dever cumprido. Um dever muito bem cumprido! Ela fica ainda mais forte quando lembro da conversa que tive com a Dona Nádia, no início do meu dia.
Eu havia acabado de chegar no set e como ainda era bem cedo, a equipe estava escassa. Subindo a ladeira da cidade cenográfica avistei essa senhora, sentadinha na mesma cadeira que costumo colocá-la em diversas cenas. A minha figurante mais especial abria um sorriso enorme ao me ver e, eu, encantada com tamanha beleza senil, corri para cumprimentá-la:
- Bom dia, Dona Nádia? Tudo bem?
- Tudo bem.
Sentei-me ao seu lado curiosa por descobrir quem, exatamente, era essa adorável criatura, presente em todas as minhas últimas gravações:
- Chegou há muito?
- Tem umas duas horas, mais ou menos.
- Mas, por que tão cedo se o horário de chegada era agora?
- Não gosto de me atrasar.
Silêncio. Começava o interrogatório:
- Quantos anos a senhora tem?
- 94.
- E costuma vir sozinha para aqui?
- Sim.
- Vem de ônibus?
- Pego dois.
- Mora aonde?
- Guadalupe.
- Nossa! Longe, né?
- Não. Demoro umas duas horas pra chegar.
- Mas, então, se a senhora chegou aqui às seis da manhã, significa que saiu de casa às quatro?
- Isso.
- E, vem sozinha, né?
- Venho, já falei!
- É, eu sei, mas é que, sei lá, né?
Mais silêncio... Sua voz era serena e triste...
- Há quanto tempo a senhora é figurante?
- Ih... Já nem sei... Desde a novela “A Viagem”.
- E, por que resolveu ser figurante?
- Ah, eu e meu marido já estávamos aposentados e vir pra cá virou um passatempo pra nós.
- Que ótimo! Então, quer dizer que o seu marido também trabalha aqui!
- É, trabalhava antes de ficar doente. Por isso, eu também parei de vir. Nos últimos cinco anos, fiquei cuidando exclusivamente dele. Infelizmente, ele partiu no mês passado e eu decidi voltar. Liguei pra todas as agências que eu já havia trabalhado antes, mas nenhuma me quis. Disseram que eu estava muito velha e que já não conseguia andar direito e que, por isso tudo, não dava mais. Eu não desisti e acabei conseguindo vir com a agência desse programa. É só uma vez por semana, mas tá bom. Melhor que ficar em casa.
- E, se depender de mim, não vai mais embora.
Ela riu.
- A senhora mora sozinha agora?
- Não. Moro com Deus e com a minha gatinha.
- Tem filhos?
- Tenho. Quatro filhos, seis netos e dois bisnetos.
A essa altura do campeonato, eu já não tinha mais palavras. As lágrimas começavam a cair e eu não queria que ela percebesse. Fiquei encarando o horizonte numa tentativa de conter a emoção. Ela seguiu:
- Eu estou preocupada, porque os outros figurantes estão falando que eu não posso ficar sentada o tempo todo, senão vão me mandar embora. Mas, eu posso andar. Eu sei que é devagar, mas já é alguma coisa. Você acha que podem não me chamar mais?
Ela realmente não sabia uma das minhas funções no trabalho...
- Dona Nádia, quem decide isso sou eu. Quem escolhe cada rostinho presente nesse set sou eu e a senhora pode ter certeza que jamais ficará de fora. Andando ou não, seu lugar é aqui.
- É mesmo?
Assenti. Ela chorou de alegria e eu finalizei:
- Posso lhe dar um abraço?
- Pode, minha filha! Muito obrigada!
- Obrigada à senhora...
Foi o abraço mais longo que eu dei nos últimos tempos. E mais energizante também! A equipe começava a se colocar a postos e era hora de trabalhar!
Passei o dia todo com a emoção à flor da pele. Chorava por qualquer coisa. Caí em prantos numa cena de reconciliação entre pai e filho, chorei quando recebi um elogio do meu chefe, quando ouvi a voz de Maria ao telefone, quando observei a Dona Nadia almoçando ao meu lado, além de todos os outros momentos em que as lágrimas rolaram sem o meu consentimento.
Só mesmo o Seu Adail pra me fazer gargalhar num dia desses. E eu tenho que relatar esse momento a vocês:
Estávamos nos últimos ajustes de câmera antes de começarmos a rodar uma das cenas. Como de costume, fui passar o olho nos visores das câmeras para me certificar que os quadros estavam livres de qualquer objeto não desejado como, cabos de câmera e de refletores, lixo, pedaços de cenário e por aí vai.
O Seu Adail é um cabo man, muito gentil, humilde e educado, que trabalha na empresa há mais de trinta anos. Ao me avistar numa das lentes, falou:
- Ô, Flora, esse cabo que ta no chão vaza pra essa câmera aí?
- Não, Seu Adail. Fica tranqüilo que a mesa de sinuca está na frente.
- Ah, mas, agora, minha TV é 3D e, no 3D, tudo aparece, até o que está escondido atrás das coisas, sabe como é? A sua TV é 3D?
- Não.
- Então, na sua, o cabo não vai aparecer.
Pois bem, segui o dia em paz, chorando ao pensar na Dona Nadia e rindo ao lembrar do Seu Adail.
Agora, exausta após um dia agitado e cheio de informações, me preparo pra dormir e renovar minhas energias. Mas, peraí, meu telefone está tocando: meu chefe!
- Alô?
- Oi Flora! Tudo bem?! Desculpa te ligar a essa hora, mas preciso de alguém pra me socorrer!
- Oi, Fernando! Diga! Aconteceu alguma coisa?
- Então, o Serra assistiu o programa que vai ao ar amanhã e pediu algumas modificações na edição.
- Sei...
- E, eu queria saber se você poderia me ajudar?
- Claro. Mas, o que eu posso fazer pra te ajudar? Você quer que eu ligue pra algum editor e...
- Não. Então... Não tem mais ninguém por lá...
- Tá. Você quer que eu vá lá e faça essas mudanças, é isso?
- Isso! Tem que reeditar e ressonorizar o programa hoje ainda. Temos que tê-lo pronto o mais rápido possível.
Foi nesse momento que Mateus abriu a porta do quarto com um sorriso de orelha a orelha e um ramalhete em suas mãos. Sim, depois de ler a minha mensagem, ele deixou de ir à academia para ficar comigo, e, eu, o deixaria aqui, sozinho, para cumprir meu dever...
Não tive muita coragem para encará-lo. A única coisa que pedi foi que compreendesse. Pedido assentido!
Meu corpo foi trabalhar depois de quatorze horas já trabalhando. Fiquei mais umas três por lá e quando voltei à cama, Mateus já dormia... Fiquei a observá-lo sob um feixe de luz refletido pelo carregador de bateria do celular. Dei-lhe uns beijos na nuca e deitei. Com os olhos arregalados, sem sono de tanto cansaço, lembrei da indagação vinda do homem que operou o equipamento da ilha de edição nessa noite:
- Você está cansada porque acordou às seis e meia e está trabalhando há dezessete horas? Pior eu que acordei às cinco, fiz um turno de oito horas numa empresa e completo mais oito em outra. E não é só um dia não. É todo dia!
- Mas, que horas o senhor dorme então?
- Eu não durmo, minha querida!
É... Trabalhar é preciso!