domingo, 13 de março de 2011

Mudanças


O som do bloco de carnaval, que passa a algumas quadras daqui, invade meus ouvidos enquanto sigo na tentativa de escrever este post. As vozes do povo na rua entoando seus cânticos em uma catarse fenomenal chega até mim como num filme em preto e branco. Mas, por que em preto e branco? Porque a única imagem colorida que se faz em minha mente é a da crença na transformação da mudança.
          Ta aí... Mudar... Essa é uma palavra que nos acompanha em quaisquer fases das nossas vidas. Aonde quer que estejamos, lá está ela. Nós a invocamos, nós a suplicamos, nós precisamos dela para não enlouquecermos e continuarmos fortes em nossa jornada. Ela nos faz evoluir, nos obriga a melhorar e torna a nossa rotina demasiadamente mais interessante. Devemos gratidão a ela pelo resto da eternidade.
         O que seria de nós sem a mudança? Seríamos seres entediados, fracos e desinteressados pela vida. A humanidade não teria chegado aonde agora se encontra. Talvez ainda estivéssemos tentando obter o fogo da fricção de duas rochas ou estivéssemos tentando estabelecer comunicação com povos similares. O mais provável seria a extinção da vida nesse planeta. Morreríamos por não conseguirmos caminhar e fracassaríamos perante qualquer dificuldade simplesmente pelo fato de que o que nos faz crescer e alcançar objetivos é o embalo nos benefícios da mudança favorável.
          É dessa maneira que encaro qualquer oportunidade de transformação. É assim que recebo notícias de amigos queridos contando sobre novidades. Afinal de contas, as escolhas só nos são dadas como instrumento de evolução e devemos agarrá-las sem medo ou desconfiança. Se chegaram até nós é porque cresceremos junto a elas nas bem aventuranças ou nas dificuldades. Em qualquer batalha, por menor que seja, saímos fortalecidos, assim como saímos em toda transformação positiva ou não. E, foi sem acreditar no que ouvia do outro lado da linha que recebi a notícia de uma grande amiga:
-       Vou me mudar...
Essa frase não causaria tanto impacto se estivesse vindo de qualquer outra pessoa. Mas, dela não. Não era possível que isso estivesse acontecendo:
-       Como assim se mudar? Você vai ter que sair desse apê?
-       Pois é... A Luana pediu as chaves. Parece que ela se separou e quer voltar pra cá.
Sem querer acreditar no que acabara de ouvir, busquei lá no meu interior aquelas palavras clichês de incentivo e emendei:
-       Teca, vai ser ótimo. Você vai ver.
-       Ai, Fló, estou arrasada... Já chorei tanto...
Era hora de falar mal do que seria o passado e valorizar o futuro:
-       Ó, esse apê nem é bom pra você. É super longe do trabalho, é isolado do mundo, tem mofo, faz você perder horas no trânsito... Você vai ver como vai ser melhor procurar um lugar mais bem localizado. Vai ser outra vida! Mudança, Teca! Mudança! Isso é ótimo!
Bom, eu tentei... Mas, confesso que não foi uma tarefa fácil. A Teca se mudou quatro vezes nos últimos dois anos. Essa seria a quinta mudança... Sempre que ela se estabeleceu bem num lugar e conseguiu viver feliz e adaptada, algo aconteceu e ela teve que se mudar. Palavras de incentivo, como as que tentei jogar pra ela em nossa ligação, já devem ter sido ouvidas milhares de vezes em cada nova mudança. De qualquer maneira, não havia nada diferente a dizer. Devíamos acreditar que seria bom pra ela.
O mês se passou e a procura ensandecida por um novo lar se intensificou. Ela passava horas catando anúncios de jornais, ligando para corretores, visitando apartamentos. Até que encontrou um bom: perto do trabalho, com preço razoável. Burocracias à parte – e, vamos combinar como são chatas essas tais burocracias –, chegou o grande dia: o dia da mudança!
Lá fui eu, cheia de gás, ajudá-la nessa nova empreitada. Quando ela me viu, abriu um sorriso de orelha a orelha. Ela tinha dúvidas que eu apareceria para ajudar? Bom, além do frete, carregado de móveis e eletrodomésticos, enchemos nossos carros com inúmeras malas e sacolas de todos os tipos. Subimos e descemos as escadas do apê quase vazio umas quinze vezes. Dirigimos até o novo lar e descarregamos uns oito carrinhos de compras. Depois, voltamos até o antigo apê e repetimos toda a operação.  
O resultado do fim do dia era: um apartamento vazio, frio, pronto para receber um monte de outros móveis, eletrodomésticos, malas, sacolas e uma vida cheia de esperanças e, um outro apartamento que, antes vazio e frio, agora continha um futuro inteiro, pronto pra recomeçar.
Como a gente tem tralha! Eu tinha que interromper o fio da meada para fazer essa observação. É impressionante como um ser humano consegue juntar tanta coisa ao longo da vida.  Mas, o problema não é juntar. O problema é o quanto nos apegamos a coisas que tem histórias: é o bibelô quebrado que ganhamos no aniversário de quatro anos, o ursinho de pelúcia do primeiro namorado, o short surrado que nos acompanha há anos, o caderno da quinta série cheio de anotações dos amiguinhos e por aí vai... Carregamos um monte de coisa que nos fazem reafirmar nossa identidade constantemente, que fazem com que olhemos para trás e enxerguemos uma vida repleta de situações interessantes. Precisamos disso para recarregar energias e confiarmos em nós mesmos.
Teca e eu olhamos ao redor e parecíamos não acreditar no tanto de coisa que havíamos carregado. Ficamos felizes. Algo se acendeu no coração da minha amiga. A possibilidade de uma transformação positiva oriunda de uma mudança imposta pela vida fazia-a sorrir novamente. Começamos a traçar planos para os próximos meses e, dessa maneira, já achávamos que nada melhor poderia ter acontecido. Era uma página virada. Um capítulo finalizado. E isso inundava seu coração com forças para seguir em frente. Saímos para jantar e brindamos, esperançosas, a nova fase que surgia.
Somos seres que precisamos de mudanças para continuarmos confiantes e felizes. É o recomeço proveniente da mudança que alimenta nosso dia-a-dia. É por isso que as quatro estações vêm e vão. É por isso que giramos em torno do sol. É por isso que estabelecemos a contagem do tempo. De outra maneira, apodreceríamos de tédio.
Quando cheguei em casa, fui direto para o meu quarto de tralha. Abri minhas gavetas com recortes de jornais antigos nos quais eu aparecia dançando balé, olhei fotos com amigos que passaram e não voltaram mais, procurei caixas cheias de boletins do primário e não vi as horas passarem em meu relógio. Decidida, resolvi me desfazer de revistas velhas, jogos antigos e caixas quebradas. Mas, cada vez que os pegava para dar uma última olhada antes de descartá-los, um mundo de lembranças se mostrava diante de mim. Ao invés de perdê-los para sempre, retornava-os para o mesmo lugar que já se encontravam havia anos.  Ainda não conseguia me ver livre da sensação que me proporcionavam em cada contato.
É, exatamente, nesse quarto que me encontro agora montando essas palavras. O bloco que inundava meus ouvidos com marchinhas e vozes ecoadas já não tocava mais. Mergulhei tão fundo na necessidade da mudança que nem o ouvi parar. Mais um carnaval chegava ao fim, mais uma semana se concluía e, com eles, um novo mundo de possibilidades se abria. Agora, sim, o ano começaria de verdade. Agora, eu conseguiria colocar em prática tudo que havia planejado.
Meu peito enchia-se de esperança. A certeza da concretização embalada pela força da mudança alimentava minha felicidade. Um novo ano, um novo mês, uma nova semana, um novo dia. A partir de agora tudo seria diferente. A partir de agora tudo daria certo. Surgiria em meus passos aquele momento tão esperado, tão estudado, tão desejado. Precisava disso pra seguir. Precisava disso pra viver. E, assim, seguiria... E, assim, viveria...

terça-feira, 1 de março de 2011

A paz de Chopin


Eu não me agüentava mais… Estava insuportável ao extremo e a irritação tomava conta de mim num grau jamais experimentado antes. Mas, o que teria causado tamanho transtorno? Que sintomas eram esses que me capturavam ferozmente? Uma coisa era certa: já passava da hora de resolver esse quesito. Como? Não tenho a mínima idéia.
Era mais um dia como outro qualquer. Acordei, tomei um banho e fui comer alguma coisa. Ao chegar na cozinha, a moça que trabalha aqui em casa falou:
-       Dona Flora, me desculpe, mas a senhora está parecendo um zumbi.
Decidi não responder. O impacto de suas palavras me pegou de tal forma que minha mente resolveu se ausentar da Terra por alguns segundos. Algo excepcional estava acontecendo.
Dila, um pouco temerosa com o comentário um tanto desagradável que acabara de fazer, começou a se desculpar. Eu insistia em não responder. Era nítido que minha feição havia se fechado ainda mais para o mundo. Corri para meu quarto e deitei novamente. Fechei os olhos e comecei a pensar em coisas boas. Adormeci...
Meu telefone tocou num volume tão alucinante que fui puxada do palco em que dançava uma variação do Lago dos Cisnes e trazida como num golpe para o mundo que me agarrava por aqui. Sem querer acreditar no mal que se instalara em meu corpo, achei prudente não atender a ligação. A pessoa do outro lado da linha poderia ter a mesma impressão negativa que Dila teve nessa manhã. Era melhor não arriscar.
Levantei-me, como numa segunda tentativa de meu dia dar certo. Olhei-me no espelho e, rapidamente, constatei que a situação era pior do que imaginava. Minhas olheiras profundas e meu corpo inchado e prostrado não negavam o caos que encontraria pelo caminho. Mas, o que eu achava mais curioso era que eu não estava nem perto do meu período menstrual e, portanto, não haveria nenhuma causa justificada para tamanha modificação corporal e mental. A irritação ganhava terreno e eu já podia vislumbrar a árdua batalha que se apresentava em minha frente.
Voltei a deitar. Meu organismo parecia não aceitar ficar mais de cinco minutos na posição ereta. Peguei o livro da vez: o milenar “A arte da guerra”, de Sun Tzu. Seu título pareceu perfeito para embalar minha saga. Suas palavras também: “O verdadeiro objetivo da guerra é a paz”. Exatamente! Era isso que eu buscava: a paz comigo mesma. Receosa de quão profundo era seu tema, larguei o livro de lado. Era filosófico demais para aquele momento e eu precisava de algo de mais fácil absorção.
Liguei a TV e, enlouquecidamente, tratei de zapear até parar numa entrevista com uma terapeuta oriental. Coincidentemente – ou não, pois coincidências não existem –, o tema parecia encomendado para a situação. Ela falava:
-       É cada vez mais comum as pessoas dizerem: "Nem vem falar comigo, porque eu estou irritada", "Não suporto mais fulano! Ele me irrita”. Afinal, aonde, exatamente, começa a irritação? É o outro que te irrita ou é você que fica irritado do nada?
A segunda afirmativa parecia se encaixar melhor no meu caso. Era minha, absolutamente toda minha, a causa da irritação. Ela continuava:
-       É importante saber que os seus sentidos estão impregnados de crenças, regras, julgamentos, premissas e interpretações distorcidas da realidade. Seus verdadeiros sentidos estão totalmente poluídos por uma reprogramação constante do que é certo ou errado. Desde o seu nascimento, os seus pais já diziam o que pode ou o que não pode ser feito como se fossem buzinas intermináveis ressoando em seu indefeso aparelho auditivo. O seu cérebro mal se desenvolveu e você já está programado para ser de um único jeito. O jeito que eles escolheram.
Desliguei. Era o melhor a se fazer antes que eu mesma ligasse para uma “Unidade de Internação para Pessoas com Graves Distúrbios Psicológicos”.
A solução estava em mim e, sendo assim, não haveria com o que me preocupar. É extremamente mais fácil quando a chave para a resolução dos males que nos afligem está em nós mesmos. Sanaria esse pequeno percalço mais rápido do que poderia imaginar. Na verdade, já havia sanado. Estava boa novamente. Era isso!
Confiante de minha rápida transformação positiva, liguei para Mateus:
-       Alô?
-       Oi Amor! Boooooom Diaaaaaa!
-       O que houve? Que voz é essa?
-       Como assim, que voz é essa? É a minha voz,amor...
-       Não. Você tá esquisita. Aconteceu alguma coisa?
Silêncio. Ele persistiu:
-       Amor? Ta aí? Que houve?
-       Oi. Não... Ta... tudo bem...
-       Tem certeza?
-       Tenho, claro – tinha que encontrar uma saída para essa conversa, antes que ele próprio desistisse de mim – Ih, meu outro telefone está tocando. Depois, a gente se fala. Beijo!
Como ele havia detectado que algo estava errado? Eu o havia recebido com um “Bom dia” contagiante... Ou não... Droga, o “mal” se proliferava em minhas pequenas atitudes. Ai, que saco! Queria abrir um buraco e sumir. Mas, era preciso encarar a realidade. Eu tinha diversos compromissos marcados naquele dia e não podia dar pra trás em nenhum.  Mais irritada ainda depois de constatar uns quilinhos a mais enquanto obrigava minha calça jeans a caber num manequim impróprio para ela, entrei em meu carro e parti.
No caminho até o trabalho, consegui brigar com todas as pessoas que me ligaram: com a moça da agência de viagens que ainda não havia reservado meu hotel, com o senhor do seguro de saúde que tentava me empurrar um plano que eu não queria, com o rapaz da administradora que havia mandado o boleto sem o código de barras, enfim, com todos que cruzaram meu caminho naquele momento. Era claro que a culpa era deles, não minha. Era óbvio que eles haviam me dado motivos suficientes para eu sair do sério. Todos haviam merecido cada palavra cruel que jorrava de minha boca. Negativo. Na verdade, a esquisita da história era eu.
O dia passou, a noite também. O outro dia passou, a outra noite também. Mais dois dias se passaram, mais duas noites também... Só a minha irritação não ia embora. Ao contrário: aumentava em progressão geométrica.
Todos pareciam desistir de mim: Maria, Dila, minha mãe, meus amigos, até minhas adoráveis cachorrinhas esboçavam um sinal de desistência. Menos Mateus. Ele ainda seguia confiante. Ele era a minha última esperança...
-       Vamos comprar um presente pra você!
Foi com essas palavras que ele me acordou depois do quinto dia consecutivo de irritação constante. De olhos ainda fechados, retruquei:
-       Mas, o aniversário amanhã é seu, não meu.
-       Mas, se você não melhorar hoje, amanhã eu desapareço! Vamos! Levanta!
Certa do desafio imposto, aceitei a proposta. Era minha última chance.
Me arrumei com a mesma prostração dos últimos dias e segui, reticente, com Mateus para o shopping. Não conseguia imaginar algo que me fizesse ficar bem naquele momento. Talvez flores, talvez livros, talvez um bom cd. Tudo talvez...
Entramos numa loja de animais a fim de comprar uns biscoitinhos para nossas filhas, até que, inesperadamente, entre uma prateleira e outra, meus olhos se cruzaram com os olhos dele: o magnífico Chopin.
Chopin era um peixinho, todo branquinho com bolinhas pretas, que me chamou a atenção por não parar de dar cabeçadas no vidro do aquário. Ele recuava um pouquinho, mantinha o olhar firme na direção desejada e vinha com toda a força ao encontro do limite de seu cárcere. Pow! Depois, voltava a recuar um pouquinho mais e repetia a operação. Pow! Meu Deus! Ele tem problemas! Hipnotizada por tamanha atitude patogênica desse minúsculo ser, meus olhos paralisaram-se ao observá-lo.
Algo me aproximava daquele peixinho. Ele lutava com todas as forças para sair daquele lugar assim como eu lutava para sair da redoma negativa que me envolvia por inteiro. Ele buscava a felicidade, a liberdade. Eu também. Estávamos mais unidos do que podíamos imaginar. A nossa ligação seria inevitável.
-       Flor, tá tudo bem?
Foram essas as palavras de Mateus ao se deparar comigo hipnotizada pela coragem de meu mais novo amigo.
-       Eu quero – afirmei.
-       Você quer o quê?
-       Eu quero esse peixe!
Mateus soltou uma gargalhada, já, certamente, arrependido da proposta que me fizera, há algumas horas atrás.
-       Pára de brincadeira, amor!
-       Não, você não está entendendo. Eu vou levar esse peixe.
Saí, decidida, à procura de alguém que pudesse me auxiliar em minha nova aquisição. Encontrei João Tiago. Seu nome saltava no crachá laranja preso em sua camisa. Certa de que seus pais haviam ficado numa dúvida cruel ao nomear esse rapaz, ele era a pessoa certa para me ajudar naquele momento:
-       Oi. Eu quero levar aquele peixe que dá cabeçadas no aquário.
-       Qual? O Chopin? – será que havia mais algum que também fazia isso, pensei.
-       Chopin? Sei lá! Eu não sei o nome dele.
-       É, deve ser o Chopin. É um molinésia dálmata?
-       Hum?
O papo estava alcançando status de outro mundo. Resolvi ficar quieta e segui-lo. Bingo! Era ele mesmo! Chopin! Incrível! Não podia acreditar! Ele tinha o nome do meu compositor favorito. Era claramente um sinal enviado dos céus.
-       A senhora vai levar só ele?
-       Sim.
-       Ok. Vou pegá-lo.
-       Mas, João Tiago, eu não tenho aquário.
-       Ah, não? Então, como a senhora quer fazer?
-       Vou comprar um aquário, ué!
Mateus se intrometeu:
-       Faz o seguinte: a gente vai dar uma volta e vem aqui pegar depois, né, amor?!.
-       Não. A gente vai levar agora.
Era melhor ele não contrariar. Eu dava sinais de alguém prestes a cometer uma loucura.
Durante o processo da compra, tive que escolher o aquário, os brinquedinhos, o cascalho, a comida e acabei escolhendo, também, mais dois companheiros para Chopin: Liza (nome dado por Mateus, a um peixinho molinésia laranja, em homenagem à diva do musical norte-americano) e Ralph (um caramujo hiper-ativo que me conquistou à primeira vista).
A minha felicidade, ao sair da loja com aqueles três novos integrantes da minha família, era tão grande que eu parecia uma criança saindo da feira de animais com aquele peixinho Beta que sempre morria algumas horas depois.
Chegamos em casa e ficamos muito tempo arrumando o aquário, limpando o cascalho, colocando a bombinha e tentando estabelecer uma conexão com aqueles seres. Nos rendemos a boas gargalhadas e Mateus parecia não acreditar na novidade.
Eu tinha certeza que traria felicidade ao Chopin. A felicidade que ele buscava. Juntos iríamos vencer toda aquela irritação. Aliás, já caminhávamos para isso...
Dormi e acordei muito melhor do que todos os cinco dias anteriores. Aquele singelo peixinho havia me instigado a lutar contra tudo que me atacava negativamente. Ele havia me feito sorrir!
Passei, praticamente, o dia todo observando-o em seu novo lar. Ele parecia tão feliz nadando de um lado pro outro, descobrindo-se entre barquinhos e plantas, relacionando-se com Liza e Ralph. Meu coração descansava em paz. Eu havia feito o bem. Havia tomado uma decisão acertada. Havia salvo uma vida da solidão e da obscuridade.
Ele não mais batia ferozmente contra o vidro do aquário. Ao contrário, nadava, nadava, subia e descia, descansava, enfim, levava uma vida feliz!
A noite chegou e com ela a comemoração do aniversário de Mateus. Os novos integrantes da casa foram festejados por todos os amigos que nos visitaram. Eu estava tão radiante! Volta e meia me pegava parada, com os olhos estagnados naqueles seres aquáticos. Exibia-os extremamente orgulhosa da minha nova formação de família.
A manhã seguinte foi presenteada pela chegada de Maria, que, em pleno domingo, saiu de casa, embaixo de muita chuva, para conhecer o tão falado Chopin.
-       Vem cá. Você vai se apaixonar! – Peguei-a pelas mãos e corri para a sala. Lá estava ele! – Maria, olha como ele é lindo!
-       Qual é? Esse branco e preto?
-       Isso! Ele mesmo.
-       Que bonitinho... Ué, mas, ele não está se mexendo.
-       Hum, esquisito. Deve estar paradinho descansando.
-       Não, Flor. Acho que não.
Maria deu uns três toquinhos no vidro e nada. Chopin repousava imóvel sobre o cascalho.
-       Não, Ma, não é possível. Ele estava todo serelepe aí.
-       Flor... Acho que...
O choro parou em minha garganta. Isso não podia ter acontecido.
-       Cadê a Liza? E o Ralph?
-       Peraí – ela começou a procurá-los – Tem um laranjinha aqui e um caramujo no barquinho. Também estão quietinhos...
O choro, definitivamente, pulou de minha garganta e inundou meus olhos, meu rosto, meu peito, meu coração. O que haveria acontecido para tamanha desgraça? Maria me abraçou como uma mãe abraça seu filho numa perda inesperada.
Não era possível encará-los como antes, mas também não conseguia deixar de olhá-los. Retirei-os do aquário com uma redinha e fui até um cantinho do jardim. Cavei um pequeno buraco e coloquei-os lá. Antes de cobri-los, fiz uma prece. A chuva batia em seus corpos numa tentativa de reanimá-los para o mundo que os aguardava ansiosamente.
Entrei em casa com um vazio enorme no peito. Mas, era apenas um vazio. A tristeza e a irritação não ameaçavam voltar. Chopin havia me feito um bem enorme que, apesar de sua jovem partida, continuava lívido em mim.
Quando comecei a escrever esse post, aqueles três peixinhos nadavam ao meu lado, inspirando-me a contar-lhes sobre a minha alegria ao tê-los por perto. Depois de quatro horas escrevendo, não achava mais palavras para formar um final coerente. A voz soprou: “Pare um pouco agora. O final virá...” Respeitei a intuição e parei. Passei o dia pensando que final seria esse. Haveria de ser bem feliz!
Agora, sentada em frente ao computador, tenho palavras que saltam pela tela. Tenho dedos que trabalham rapidamente sobre letras iluminadas. O final pode não parecer feliz. Em sua essência, na verdade, não é... Mas, estranhamente, a paz que encontro em minha alma é tranqüila e densa. É a paz que tanto procurava entre uma prateleira e outra, antes de meus olhos se cruzarem com os olhos do magnífico Chopin. É a paz que ele tanto procurava toda vez que recuava um pouquinho, mantinha o olhar firme na direção desejada e vinha com toda a força ao encontro do limite de seu cárcere.
Talvez ele estivesse esperando ansiosamente a minha chegada para retira-lo daquele lugar e ajudá-lo a cumprir sua missão de me trazer essa paz. Talvez ele tenha encontrado a felicidade que tanto buscou e, sendo assim, já não pertencesse mais a este mundo. Talvez ele tenha merecido. Talvez o merecimento seja meu. Tudo talvez, assim como os livros, as flores e os cds que  me levaram até seu encontro.
A chuva volta a cair, mas, agora, sem tentar reanimá-los para o mundo que ficou pra trás. Aonde quer que estejam, estarão em paz. A mesma paz que deixaram por aqui...