É com um aperto no peito, a emoção à flor da pele e outros sentimentos que não consigo explicar que começo a escrever. Não fosse pelos meus últimos minutos, nenhuma dessas palavras se juntariam. Não fosse por aquela voz, também não. A conjunção desses fatores despertou algo escondido em mim, algo que já se mostrava tímido, mas que acabou por me consumir inteiramente: o pânico da morte de nossos amores.
Maria, nos seus 75 anos, tem uma mãe. E pasmem: viva! Ela é a portuguesíssima Dona Álida, apelidada, carinhosamente pela minha inabilidade fonética infantil, de Lida. Tendo em vista que tanto meus avós paternos quanto maternos já não se encontram mais por aqui, essa senhora de quase 98 anos e uma vontade enorme de cumprir o centenário, é amada por mim como se fosse minha avó. Freqüentadora assídua da casa de Maria, desde os meus primeiros dias de vida, cresci junto com sua velhice e compartilhei com ela toda minha história.
Há uns dias atrás, Mateus e eu fomos visitá-la e, como de costume, sentamos na sala para batermos um papo. Ela, louca que é pelo meu marido – sempre que vamos lá, ela faz questão de dizer que se fosse mais jovem brigaria comigo por ele –, fechou seus olhos que já não podem mais ver, pois estão desgastados por tantos anos de vida, e começou a entoar:
- Estou em Chelo. Minha casa é tão linda. Ah, olha o meu quarto, cheio de remendos de tecido! Estou andando, andando... Eu posso ver! Meu Deus, obrigada! Eu voltei a enxergar! Posso ver meu quintal, minhas roupas no varal... Ah, as crianças correm, corem muito! Brincam com as bonecas que as fiz. Olha a minha sala de costura! Está igualzinha como a deixei, há mais de quarenta anos atrás! Tenho muitas encomendas pra entregar essa semana. A Dona Pureza deixou dois vestidos pra fazer bainha e, além disso, também tenho que fazer os uniformes dos filhos do Antônio. Vocês me desculpem, meus queridos, mas tenho que me retirar.
- Sim, claro. Vai lá! – falei – Aproveita e termina de fazer a bainha naquela minha calça, tá?!
Dei um beijo em sua testa e tive que sair. As lágrimas corriam pelos nossos rostos e não conseguíamos mais ficar ali. Tentando disfarçar a emoção, chamamos Maria para almoçar. Não tocamos no assunto. Guardamo-lo para nós.
Nessa noite, ao chegar lá em cima, perguntei ao Luca se não podíamos voltar àquela casa. Estava preocupada com a Lida e, também, com Maria, que já havia me relatado estar sem dormir, há dias, por causa das crises de sua mãe nas madrugadas. Ele topou!
Ao pousarmos naquele recinto, algo me chamou bastante atenção: um pequeno canal aberto conectava o peito da Lida com o céu. Assim mesmo. Exatamente como estou descrevendo. Não conseguia ver aonde ele ia dar, mas sua ligação era bem clara.
Deviam ser umas três da manhã e ela, como eu já esperava, estava acordada, de olhos fechados, falando sem parar. Maria, encontrava-se ao seu lado, de mão dadas, acarinhando-a e ouvindo-a.
Mais uma vez, a emoção veio forte. Chorei. Continuo chorando até agora. Luca interveio:
- Ei, não adianta chorar! Você só atrapalha assim!
- Eu sei. Mas, essa imagem é forte demais pra mim. Queria fazer alguma coisa, queria poder ajudar.
- Ajudar? Ajudar a quê?
- Sei lá. Ajudá-la a ficar bem.
- Mas, é exatamente isso que está acontecendo. A diferença é que não é você quem está ajudando, mas, sim, outros amigos.
- Você está querendo dizer que toda essa alucinação que ela está tendo é proposital?
- Claro, Flora! Isso tudo é pra facilitar a passagem dela. Quanto menos noção da realidade ela tiver, mais fácil será o processo e menos doloroso também.
- Mas, olhe pra Maria. Ela, certamente, está sofrendo com tudo isso.
- Maria é um anjo que apenas cumpre sua missão. Isso só traz pra ela coisas melhores ainda, acredite.
- Então, significa que a Lida está quase partindo?
- Aham...
Desatei a chorar. Luca, me encarou nos olhos e lançou:
- Vamos embora, agora! Você é muito imatura! Não é possível, Flora! Quantas vidas você vai ter que viver pra aprender a viver?!
Partimos sem meu aval, claro. Mas, como não tive escolha, segui.
Os dias seguintes foram tensos. Qualquer telefonema me aterrorizava. Ficava imaginando a notícia de sua morte. Mas, para minha felicidade, todos sempre trouxeram notícias bem menos dolorosas.
Por que é tão difícil aceitarmos a partida daqueles que amamos? Não somos capazes de nos desapegarmos mesmo quando a vida por aqui já não é das melhores há tempos. Queremos todos os nossos amados, exclusivamente, para nós. Essa é a verdade. O medo do sofrimento pela falta e da aceitação da saudade nos faz pessoas egoístas. Temos que trabalhar nossa coragem mesmo quando ela parece não existir. Pois é. Eu sei disso tudo. Já ouvi milhões de vezes, mas não dá. Ainda não estou preparada para perdas. Mesmo acreditando que sejam temporárias.
Olho para as pessoas que amo e começo a imaginar minha vida sem elas. Fico aterrorizada. Começo a abraçá-las mais, a dizer repetidas vezes o quanto as amo, a buscar mais tempo para elas e jamais negar um pedido – vai que é o último! – . Acontece que, definitivamente, não é possível viver desta maneira neurótica. Prometi para mim mesmo que não sofreria antecipadamente a partida de ninguém. Apesar de continuar olhando para minhas adoráveis cachorrinhas sem conseguir conter as lágrimas. Mas, hoje haveria de ser diferente. Hoje era um novo dia e eu precisava me desprender desses sentimentos negativos antes de enlouquecer...
Até que toca meu telefone. Olho no visor: Maria. Já era noite e eu dirigia a caminho da academia, aonde em alguns minutos me encontraria com Mateus para mais uma série de exercícios juntos:
- Oi, minha linda! Tudo bem?
- Oi, Flor. Tudo indo...
- O que houve?
- Não, nada demais... A minha mãe, você sabe...está cada dia pior e eu não sei mais o que fazer. Acredita que agora ela cismou que vive na nossa casa de Chelo?
Fingindo uma estranheza, continuei:
- Ah, é? Que loucura...
- Pois é. Agora mesmo, estava nos levando pra escola e falando com as pessoas na rua enquanto passava.
Desliguei o telefone na cara dela. Fingi que a ligação caiu... O nó subiu a garganta e meu orgulho me impediu de prosseguir com palavras. Respirei culpada pelo meu ato impensado, mas, para mim, necessário. Ela tornava a ligar. Eu tinha que atender. Havia de ser forte e me segurar:
- Oi, Maria. Caiu...
- É, percebi. Mas, é isso, Flor... Acho que a minha mãe está indo embora.
- Não... Vai ver foi só uma pequena ausência.
- Não, Flor. Você devia ver pra perceber como há vida no que ela fala. Ela realmente está em Portugal.
Conversamos mais um pouquinho, o quanto pudemos e nos despedimos. Já estava a poucos metros da academia e precisava desligar. Foi nesse instante que meu coração parou e, em seguida, disparou.
Os carros freavam e algumas pessoas começavam a se agrupar. Era claro que algum acidente acabara de acontecer. “Não, não podia ser o que eu estava pensando”. Mas, era justamente no local que Mateus atravessava todos o dias para ir à academia. E, exatamente, onde toda vez que ele estacionava, a voz soprava em meus ouvidos: “Fala pra ele não parar o carro do outro lado da rua. Essa travessia é muito perigosa”. E é mesmo. Isso tudo porque o estacionamento da academia é pago e o da rua não. Falei inúmeras vezes para ele não parar o carro lá, mas ele é teimoso. Nunca me obedeceu.
Coloquei a cabeça para o lado de fora da janela e pude ver o carro dele estacionado no lado oposto. “Teimoso demais!”, pensei. Em seguida, avistei o que jamais gostaria de ter visto: o corpo de um homem que repousava ensangüentado no asfalto. Num ato de desespero, peguei meu telefone e liguei para Mateus. Chamou, chamou, mas ele não atendeu. “Não era possível! Havíamos nos falado há poucos minutos e estava tudo bem”. Saltei do carro e, desesperadamente, corri até aquele corpo estendido no chão. Ao mesmo tempo que não queria acreditar, mesmo ainda de longe, buscava semelhanças com Mateus: os sapatos eram muito parecidos, a calça também... “Não!!!”, gritei. “Não pode ser!”. Corri mais e, ao chegar, afastei as pessoas que tentavam socorrê-lo. Foi quando pude ver. Não era ele.
Levantei-me, recuando, sem conseguir tirar os olhos daquele corpo inerte e sem vida. As pessoas fechavam o cerco novamente. Comecei a tremer e a chorar muito. Os últimos segundos haviam sido como um pesadelo, daqueles que a gente despenca do mais alto edifício.
Entrei em meu carro, bastante atordoada. Acabara de presenciar a agonia da perda. Acabara de assistir algo que havia falado repetidas vezes a Mateus. Parei no estacionamento da academia e desabei. O telefone tocou. Era ele:
- Alô?
- Oi, amor! Aonde você está? Já estou correndo na esteira!
Engoli o choro e falei:
- Oi, meu lindo! Que bom que você já chegou! Estou subindo...
Peguei o elevador, entrei na sala, corri até ele e, mal pude acreditar quando o avistei, lindo e saudável de costas para mim:
- Promete que nunca mais pára o carro do outro lado da rua?
- Hum?!
- Promete?
- Por que você está falando isso?
- Não interessa. Promete?
- Tá. Prometo.
- Então, pára a esteira e me dá um abraço bem forte!
- Flora! Não, né?! No meio da academia?
- Mateus, eu disse, pára a esteira agora!
Ele me abraçou meio a contragosto... Percebi que ficou olhando pros lados, envergonhado. Eu não. Mergulhei em seus braços por longos segundos, dei um beijo em sua boca e finalizei:
- Vou pra casa.
- Como assim? Você não veio malhar?
- Não. Vim pedir pra você não parar nunca mais o carro do outro lado da rua.
Assim que cheguei em meu quarto, liguei o computador e pus-me a escrever. Agora, minutos depois de todo esse turbilhão, percebo que respiro um pouco mais aliviada. Mas, na dura certeza de que nessa vida ainda não aprendi a viver...
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