Fiquei numa dúvida cruel sobre contar ou não contar o que estou prestes a
contar. Na verdade, tenho essa dúvida há mais de dez anos. Ela foi intensa nas
primeiras 72 horas, mas depois, ela desapareceu. Havia decidido enterrá-la para
sempre. O problema é que esse “para sempre” durou apenas 10 anos, 4 meses e 28
dias.
Foi quando a vontade louca de contar o que estou prestes a contar voltou
a tomar conta de mim por inteiro. Não que eu ache que isso vá ter alguma
conseqüência nos dias de hoje. Analisando bem, não teria. Mas, então, para quê
contar? Há coisas na vida que a gente tem controle. Há coisas que não.
Faltavam três dias para completar meus dezoito anos. Apenas algumas horas
me separavam da tão sonhada entrada em boates e casas de show. Estava cansada
de viver como uma criminosa ou fugitiva e ter que driblar o coração acelerado e
a cara de “sou menor, com certeza” todas as vezes que apresentava a minha
carteira de identidade falsa. Era chegada a hora de esfregar a original na cara
de todos aqueles que tiveram a audácia de me barrar e estragar minhas noites
adolescentes.
Naquela época, eu ainda vivia dividida entre três casas: a do pai, a da
mãe e a de Maria. E, como toda aquela empolgação pela vida noturna era fachada,
decidi comemorar a data do meu aniversário no meu restaurante preferido e
chamar apenas os amigos.
Fui para a sala do apartamento da minha mãe e comecei a ligar para todos.
Há muitos anos eu não comemorava meu aniversário, sempre na esperança de que
fizessem alguma festa surpresa para mim. Na escola, era praxe: você chegava de
manhã, todos fingiam que não sabiam que era seu aniversário, mas, na hora do
recreio viam com bolo, refrigerante, balões e cartazes carinhosos. Era sempre
assim. Ou melhor: tirando comigo, era sempre assim.
Quando eu era pequena, era super popular no colégio. Ganhava as eleições
para ser representante de turma, tirava medalhas de ouro nas olimpíadas e,
ainda por cima, era a melhor aluna da série. Com o tempo, a minha fama
desandou... Até hoje não sei muito bem porque isso aconteceu. Talvez eu tenha
ficado chata. Talvez eu tenha me ausentado demais e me dedicado apenas a minha
vida como bailarina. Passava as tardes e as noites dançando, ensaiando e
costumava ir à escola apenas para dormir. Sentava na última cadeira, lá no
canto, posicionava meu casaco como um belo travesseiro e apagava. Só acordava
mesmo quando a inspetora chegava: “Flora, está na hora do recreio, você tem que
sair”. E lá ia eu para uma salinha no prédio anexo que tinha um piano. Ficava
os vinte minutos do recreio tocando os mesmos “Noturnos” de Chopin. Todo o dia era assim. Depois,
voltava para a sala e dormia de novo até a hora da saída.
Faltava que era uma maravilha! Lembro de um ano em que tive cinqüenta
faltas. Fui chamada na supervisão e tudo. Diziam que eu já estava estourando a
cota de faltas anuais e que seria reprovada. Eu sabia que não. Continuava
tirando as melhores notas e liderando o ranking com folga. Mas, mesmo assim,
decidi não faltar mais...
A Serena era minha única companheira. Acho que para ela eu nunca fiquei
chata. Ela me entendia e me amava como sempre. Seus olhos ingênuos de ingênuos
não tinham nada. Cheia de amigos, até fazia uma força para as pessoas gostarem
de mim. Não tinha muito jeito. A repulsa era a mesma sempre. Eu já estava acostumada.
O que me animava era que faltava bem pouco para o vestibular chegar e logo eu
iria estudar em outro lugar e recomeçar do zero.
Foi quando eu já havia aceitado minha solidão
escolar, que duas meninas resolveram se aproximar. Duas meninas muito populares
por sinal: Daniela e Daniele. Elas eram lindas, loiras, com aquele típico corpo
adolescente bem formado. Os meninos eram loucos por elas. Não sei muito bem até
hoje o que elas viram em mim: feia, esquisita e cdf. Só sei que fomos ficando
amigas, muito amigas mesmo. Elas achavam graça na minha ineficiência em lidar
com os outros. Achavam mais graça ainda na minha cara de pau e na minha
capacidade de dormir em todas aulas e continuar tirando dez. A minha
“esquisitisse” atraía elas e nós nos completávamos em cada descoberta.
Os meus recreios passaram a ser bem animados. Eu descobria a sensação de
passar vinte minutos do dia sentada numa mesa com um monte de adolescente
falando bobagem. Aos poucos, eu ia me soltando e falando bobagens também.
Serena parecia não acreditar. Sem perder tempo se juntou a nós e agregou os
seus. Éramos, então, um grupo feliz.
Era para esse grupo que eu ligava naquela noite que antecedia em algumas
horas a chegada da minha maioridade. Apesar de ter amigos agora, resolvi não
arriscar a festa surpresa do colégio (realizar um sonho como esse seria bom
demais para ser verdade). Já havia ligado para mais de dez amigos quando a
minha mãe – a biológica – apareceu na sala:
-
Flora, eu não ia te falar, mas como estou vendo
você ligar para um monte de gente, achei melhor contar: os seus amigos do
colégio estão preparando uma festa surpresa pra você na casa da Serena.
Até hoje não consigo descrever o que senti naquele momento. Fiquei muda.
Os olhos arregalados, a testa franzida, a boca aberta... Não tive vontade de
sorrir nem de chorar.
-
Você ouviu o que eu falei, Flora?
-
Aham...
-
Avisa logo a Serena que você está marcando com
um monte de gente. De repente, você manda todo mundo para a casa dela.
Ela jogou esse monte de
palavras em cima de mim e saiu.
"Com um monte de gente?" Que monte de gente? Que mãe era essa que não sabia
que eu não tinha “um monte de gente” de amigos? E se eu tivesse? Não seria mais
óbvio ela ligar para a Serena e dizer que eu estava chamando esse “monte de
gente” para um jantar? Minhas amigas do colégio dariam um jeito. Não é assim
que acontece em todas as festas surpresas? Sim. Menos na minha.
Fui para o meu quarto e liguei para a Maria. Quando ela atendeu, não
consegui falar. Comecei a chorar compulsivamente. Foi quando entendi que o
golpe havia sido certeiro... Ela parecia não acreditar no que a minha mãe havia
feito. Meu pranto revoltou ela num grau inimaginável. Maria sabia que eu não
tinha esse “monte de amigos”. Maria sabia que essa surpresa seria responsável,
quiçá, pelo surgimento do dia mais feliz da minha vida. Ela não parava de
repetir: “Por que ela fez isso, meu Deus? Por que?”. Se ela não sabia, muito
menos eu.
Decidi que a frustração seria só minha. Decidi que a minha mãe só iria
conseguir estragar a minha surpresa. A felicidade dos meus amigos em
proporcionar aquele momento para mim, não.
Chorei a noite inteira. Quando digo a noite inteira, é porque foi quase a
noite inteira mesmo. Ficava imaginando como seria bom não ter sabido de nada.
Como seria mágico ser celebrada por todos assim, de repente! Eu jamais poderia
crer que fariam uma festa surpresa para mim. Seria a primeira vez que eu veria
todos se mobilizando para fazer algo que não fossem as festinhas convencionais do
recreio. E o melhor de tudo: seria para mim! Só para mim!
Fiquei pedindo a Deus para acordar no dia seguinte sem saber de nada.
Pedi tanto, tanto, que acreditei que seria abençoada. Voltei a ligar para Maria
de madrugada:
-
Má?
-
Oi, minha querida... Não está conseguindo
dormir?
-
Não... Mas, não estou ligando por isso. Estou
ligando para dizer que eu pedi muito, muito mesmo para que Deus apague isso da
minha memória. Eu pedi com tanta fé que acredito que dê certo. Então, se amanhã
quando nos falarmos, eu não tocar no assunto, por favor, não diga nada.
Certamente, será porque o meu desejo foi atendido...
Foi só depois disso que eu consegui dormir um pouquinho.
Quando o despertador tocou, não pestanejei. Corri até o quarto da minha
mãe e falei:
-
Você acabou com o meu aniversário. Só que eu não
vou fazer o mesmo com os meus amigos. Você trate de ficar com a boca fechada,
entendeu?
Cheguei na escola com os olhos inchados. Dentro de mim, um misto de raiva
e felicidade fazia confusão. Olhei para os meus amigos com outros olhos...
Olhos de gratidão. Amei-os mais a cada instante.
Passei os dois dias que antecederam a minha data fingindo para o espelho
a minha cara de surpresa. Fingi para Maria ver também. E, como ela disse que
estava bem crível, relaxei. Em outros momentos, chorava. Por todos os motivos
pelos quais deveria.
O mais engraçado era ver todos falando comigo como se não soubessem de
nada, como se fôssemos apenas jantar fora. Eles pensaram em tudo com tanto amor
e queriam que tudo desse tão certo que até, no grande dia, fizeram aquela
surpresinha de praxe na hora do recreio. Tudo para que eu não pudesse
desconfiar do que estaria por vir.
Eu, claro, dificultei ao máximo. Eles queriam me buscar em casa e eu
disse que iria de táxi, depois, resolvi adiantar em uma hora o encontro para
criar um pouco de adrenalina e eles inventaram um monte de desculpas. Os meus
amigos, do lado de lá, fazendo de tudo para que eu não desconfiasse de nada e,
eu, do lado de cá, fazendo de tudo para que eles não desconfiassem de nada...
Acabei cedendo à carona e as “Danis” me levariam até o encontro. Lembro,
até hoje, do quanto meu coração bateu forte minutos antes de elas chegarem.
Sentei ao piano e fiquei tocando todos aqueles “Noturnos” de Chopin que me acompanharam em tantos
recreios solitários. Um misto de ansiedade e felicidade tomou conta de mim.
Na chegada à casa de Serena, fingi magistralmente a cara de surpresa.
Chorei e tudo! Mas, chorei de verdade. Apesar da tristeza que antecedeu aquele
momento, ver todos os meus amigos ali, para mim, foi um sonho realizado. E, é
claro que a minha mãe não havia ido, mas, isso não importava: Maria estava lá!
-
Você desconfiava de alguma coisa? – ela
perguntou
-
Como assim, Má? Você sabia que eu sabia de tudo!
-
É que a sua reação foi tão perfeita que eu achei
que o seu pedido havia se realizado...
-
Não, esse pedido não... Mas, o outro sim!
-
Qual outro?
-
O de ter um monte de amigos!
Ela riu, me abraçou bem forte e nós curtimos a noite à beça. A felicidade dos
meus amigos de me proporcionarem aquela felicidade bastou para mim e para ela.
Esse ano, na comemoração da terceira década do Mateus, eu decidi que faria
uma festa surpresa. E fiz. Um festão. Cuidei de cada detalhe, de cada convite,
de cada telefonema para que nada, nada, nada mesmo chegasse até os ouvidos
dele. Eu queria muito que ele conseguisse sentir o que eu não pude há anos
atrás.
Na noite do seu aniversário, quando abri a porta da casa de festas para Mateus, percebi que
o meu coração bateu da mesma maneira de quando Serena abriu a porta de sua casa
para mim. E quando todos gritaram “Surpresa”, eu consegui me sentir amada como
quando Serena, Chico, as “Danis” e meus outros novos amigos seguraram balões e
estouraram confetes.
A emoção do Mateus, sim, foi legítima. Foi ali que eu vi como é ser surpreendido de verdade: o tempo pára completamente, o ar parece que vai faltar... Ele olhava para mim e repetia: “O que eu faço? O que eu faço?”, enquanto todos berravam “Parabéns pra você...”. Aquilo sim era uma emoção verdadeira. Aquilo sim era o que eu deveria ter sentido naquela noite. Aquilo sim, era o que me fora roubado...
A emoção do Mateus, sim, foi legítima. Foi ali que eu vi como é ser surpreendido de verdade: o tempo pára completamente, o ar parece que vai faltar... Ele olhava para mim e repetia: “O que eu faço? O que eu faço?”, enquanto todos berravam “Parabéns pra você...”. Aquilo sim era uma emoção verdadeira. Aquilo sim era o que eu deveria ter sentido naquela noite. Aquilo sim, era o que me fora roubado...
O tempo passou, muitos anos se passaram e a pergunta que não quer calar é:
Por que vir com isso tudo à tona depois de tanto tempo? Simplesmente, porque há
coisas na vida que a gente tem controle. Há coisas que não.
Parabéns pelo belo texto, e, principalmente, pela bela forma de viver e ver essa estória!
ResponderExcluirComo sempre me emocionando...Muito lindo o seu gesto, mesmo que mentindo...rs saudades,
ResponderExcluirK. Cristina