sábado, 22 de outubro de 2011

Última homenagem


Nunca sei muito bem como começar a escrever um texto. Costumo ficar alguns minutos parada, encarando a tela do computador e pensando, pensando, pensando... As palavras que forem escolhidas por mim irão eternizar um momento, um pensamento e ficarão marcadas exatamente daquela única maneira para sempre. Quando me dou conta disso, quase desisto. São tantas as formas de se contar uma mesma estória que para uma pessoa, indecisa como eu, isso é desencorajador. Mas, entre escolher aquela única maneira de contar ou não contar eu, quase sempre, opto pela primeira opção.
Mesmo depois de escrever esse primeiro parágrafo e achar que ele seria perfeito para me fazer embalar no que quero lhes contar, me vejo agora parada novamente, encarando a tela do computador. Como é difícil...
Pensei em começar assim:
“Há um mês atrás, a avó de Mateus recebeu o convite do aniversário de oitenta anos de seu irmão mais novo. Ela, um tanto debilitada nos seus quase noventa anos, se encheu de vontade de estar presente na celebração e nós começamos a nos organizar para que isso se tornasse possível.
A Dona Linda só costuma sair de casa aos domingos, quando Mateus e eu nos despencamos até Niterói para levá-la em nosso carro para passear e, algumas vezes, caminhar um pouquinho. Fora isso, só visitas a médicos mesmo. Além dos agravantes normais da idade, ela é diabética e sempre que passa por momentos de forte emoção, desmaia, tem piripaque, é um problema.
Mas, mesmo com todos esses empecilhos, fizemos questão de levá-la até lá. Afinal de contas, toda a sua família estaria reunida nesse almoço de aniversário”.
Achei ruim começar assim... Muito didático, sem emoção.
Decidi fechar os olhos e tentar me lembrar que momento daquela festa me despertou para que eu realmente quisesse contar essa estória. Pronto, me lembrei...
Tínhamos acabado de chegar lá. Uma placa com os dizeres “Aniversário de 80 anos do Jorge” não nos deixava dúvidas de que estávamos no lugar certo. O ambiente era muito bonito e havia muitas flores espalhadas pelas mesas. O salão ficava no último andar de um prédio na Delfim Moreira e todo aquele mar do Leblon e de Ipanema parecia adentrar o local. As pessoas ainda se cumprimentavam, se abraçavam, se emocionavam depois de tanto tempo sem se ver.
Olhei ao redor e me dei conta de que não conhecia ninguém. Ninguém mesmo. Nem Mateus sabia direito quem aquelas pessoas eram. Mas, acompanhava sua avó e sua tia, que, com lágrimas nos olhos, pareciam não acreditar estarem diante de todos aqueles familiares que há tanto tempo não viam.
A música não podia ser melhor. Havia um saxofonista, com uma voz incrível, tocando e cantando clássicos do jazz: Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin, e por aí vai... Eu, encantada com todo aquele conjunto de acontecimentos à minha volta, retirei-me e fui para um cantinho da festa onde tornei a observar. Foi nesse momento que tive vontade de escrever. Vontade de passar através das palavras toda aquela energia boa que eu estava sentindo, falar sobre aqueles reencontros, sobre aqueles olhares, sobre aqueles sorrisos. Mateus me achou em meu cantinho e veio me abraçar:
-       Está tudo bem?
Lhe dei um forte abraço e agradeci. Ele agradeceu de volta e teve que sair para ajudar a Dona Linda a se ajeitar na mesa. Percebi que a Ana, tia do Mateus e filha da Dona Linda, havia se retirado do salão. Como notei que ela estava um pouco abalada, a segui:
-       Oi, Ana! Está gostando?
-       Aham...
-       Legal aqui, né?! Bonito...
-       É... É chato a gente se emocionar. Não gosto.
-       Por quê não?
-       Porque é triste.
-       É bom.
-       Não, não é.
-       É bom pegar aquilo que está guardado, fechado dentro da gente e trazer de volta ao mundo.
-       Mas, eu fico triste, porque eu olho todas aquelas pessoas que cresceram comigo e agora estão velhas, morrendo. Meus primos, por exemplo, a gente se perdeu. Éramos tão amigos, tão unidos, mas há anos nos afastamos sem perceber. Fomos parando de nos falar, fomos vivendo as nossas vidas com as nossas novas famílias e nos perdemos. Eu sinto tanta falta...
Ela chorou. Eu a abracei e fiquei pensando nos meus primos, na minha família... Em como crescemos unidos e ainda somos unidos. Lembrei do Chico, da Serena, do Bernardo, da Joana, do Zé e de todos os outros. Não posso deixar que nos percamos ao longo do caminho.
-       Ana, aproveita esse sentimento de agora, esse reencontro. A gente sabe que não dá pra voltar atrás, mas sempre dá pra recomeçar.
Depois dessas palavras, roubadas do Chico Xavier, ela voltou para a festa. E, eu, continuei de longe a observar.
Eram, mais ou menos, oitenta pessoas presentes, que se dividiam em quatro faixas etárias dominantes: umas vinte tinham mais de setenta anos, quarenta tinham entre cinqüenta e setenta, quinze tinham entre vinte e cinco e trinta e cinco e cinco tinham menos de cinco anos. Eram as quatro gerações da família: os pais, os filhos, os netos e os bisnetos.
Aos poucos, as pessoas vinham falar comigo. Afinal, quem era aquela menina que ninguém da família conhecia? Pois bem, no final, eu já era convocada até para as fotos do álbum de família. Quando gritaram: “Agora, os netos!”. Uma das filhas do Jorge veio até mim, me agarrou pelo braço e me levou até a posição da foto: “Você também é da gente!”. Achei incrível!
Antes do “Parabéns”, colocaram um vídeo que mostrava uma retrospectiva da vida do aniversariante. Desde como seus pais se conheceram, aonde moraram, os oito filhos que tiveram, o casamento do Jorge, os filhos que ele teve, depois os netos, os bisnetos, as bodas de ouro, os aniversários, as viagens, as formaturas dos filhos e netos... Era tanta felicidade que me deu uma vontade enorme de chegar aos oitenta. Foi aí que me lembrei dos oitenta anos do meu pai...
Eu havia preparado uma festa surpresa para comemorar a data. Seria em nossa casa, com nossos familiares e amigos, ao som de músicas do Sinatra, tocadas ao vivo por um grande amigo, intérprete do cantor. Além disso, eu havia feito um pequeno documentário sobre ele e havia gravado depoimentos das pessoas mais importantes que haviam passado pela sua vida. Contratei telão e tudo que tinha direito para passar a surpresa em grande estilo.
Meu pai já vinha reclamando, há algumas semanas, de dores nas costas e, quatro dias antes do seu aniversário, ele resolveu se internar para fazer alguns exames. Os resultados eram inconclusivos, os médicos falavam pouco. A demanda por novos exames aumentava e a nossa preocupação também. Na véspera de seu aniversário, tive que cancelar tudo. Ele não tinha previsão de alta. No dia seguinte, ao chegar no hospital, estranhei o burburinho de familiares na porta do quarto de meu pai:
-       O que houve? – perguntei a uma tia.
-       Você tem que ser forte. Seu pai está com câncer.
Bela notícia para inaugurar seus oitenta anos. Fiquei sem reação...
-       Ele já sabe?
Ela assentiu.
-       Ele está sozinho?
Ela assentiu de novo.
Entrei no seu quarto e caminhei até a cama. Ele repousava para o lado oposto. Apoiei minhas mãos sobre seu ombro e dei-lhe um beijo:
-       Flor?
-       Oi, pai. Feliz aniversário!
-       Obrigada, meu amor!
-       Olha: trouxe flores e o seu chocolate preferido!
-       Oba! Vamos comer?
Passei o dia todo ao lado dele. Vimos tv, comemos sorvete de pistache, fizemos planos para a minha faculdade de música – que eu prestaria vestibular em alguns meses – e cantamos algumas canções do Sinatra antes de dormir.
Os médicos me falaram que o câncer já estava bem avançado:
-       É um câncer no pulmão com metástase óssea. Seu pai tem apenas alguns meses de vida, minha querida. De qualquer maneira, vamos começar as sessões de quimioterapia amanhã.
Dois dias depois, ele estava em casa. Uma semana depois, metade dele estava casa... Foi impressionante o que a quimioterapia fez. Ele envelheceu vinte anos em sete dias. Já não andava mais direito, seus cabelos começavam a cair, sua voz era fraca, assim como todo o seu corpo. Lembro de olhar para ele e pensar: “Eu quero meu pai de volta. Aonde ele está?”.
Aquele homem era tudo pra mim. Era meu companheiro, meu exemplo, meu melhor amigo. Sempre morei com ele e, há mais de dez anos, éramos só nós dois dividindo a mesma casa – com Maria sempre conosco, claro! Dormíamos juntos, jantávamos juntos, dançávamos ao som de jazz. Eu tocava piano para ele todas as noites enquanto ele tomava uísque e dava pitacos: “Não foi tão bom dessa vez, engasgou naquela estrofe” ou “Perfeito, magnífico! Toca outra vez!”. E, de repente, nada mais daquilo existia. E o pior, nunca mais existiria.
Decidi fazer a festa de oitenta anos do meu pai de qualquer jeito. Seria uma forma de homenageá-lo antes de sua partida. Com a ajuda de Mateus, que já era meu namorado na época, reorganizamos tudo. Algumas horas antes da festa, fui até o quarto de meu pai e falei:
-       Coloca a sua roupa mais bonita!
-       Por quê?
-       Não pergunte por quê! Apenas faça isso por mim... Às oito horas virei buscá-lo.
Os familiares foram chegando, os amigos também. Em pouco minutos, a casa estava cheia para prestigiá-lo. Meu amigo cantor e a pianista já estavam a postos quando fiz sinal para que eles começassem a tocar. Ao som de “Fly me to the moon”, subi as escadas para buscar meu pai. Ele estava lindo! Com seu blazer azul marinho e suas abotoaduras de ouro, me esperava sentado em sua poltrona. Estendi os braços e disse: “Vamos?”.
Fomos descendo as escadas e quando as pessoas o viram, começaram a aplaudí-lo. Foi a primeira vez que o vi chorar. Segurei-o com mais força e conduzi-o até uma cadeira estrategicamente posicionada em frente ao telão. Ao fim da música, começou a primeira parte de depoimentos. Depois, mais músicas e mais depoimentos e, assim foi até todos estarem acabados de tanto chorar. Fiquei o tempo todo de mãos dadas com ele, fazendo carinho em suas mãos e ele nas minhas; trocando beijinhos e olhares.
Havia combinado com os músicos de terminar a homenagem com “My Way”, mas, ali na hora, achei melhor trocar por “New York, New York”. Seria melhor para todos. Eu, inclusive, não sei se agüentaria...
No final do vídeo e das canções, todos vieram falar com ele. Entre abraços, lágrimas e lembranças de uma vida inteira, as pessoas foram indo embora. O estado de saúde dele estava bem debilitado e ele precisava descansar.
Quando chegamos em seu quarto, ele me abraçou como nunca antes e disse:
-       Foi o dia mais feliz de toda a minha vida!
Engoli o choro.
-       Eu nunca tive uma festa como essa. Foi coisa de cinema! Eu me senti amado, adorado, celebrado! Muito obrigada, minha filha.
-       Você merece muito mais, meu pai...
Coloquei-o para dormir e quando ele já estava de olhos fechados, falou:
-       Faltou tocar “My Way”.
-       É, pois é...
-       Canta pra mim? Para eu dormir...
Tentei começar, mas não consegui. Chorei..
-       Não consigo, pai. Me desculpe.
-       Tudo bem. Outro dia você canta. Boa noite, minha flor.
Quatro meses depois daquele dia, meu pai se foi. Hoje, cinco anos depois, enquanto via todas aquelas fotos do Jorge passando no telão, tudo isso veio à minha cabeça. Ao fim do vídeo, o aniversariante gritou, estendendo os braços:
-       Yeah!!!!!!!!!
Foi de uma catarse tão grande aquele gesto que todos os familiares aplaudiram e gritaram também. Queria tanto que meu pai estivesse ali, nos seus oitenta anos, dando um berro daqueles, celebrando a vida e os anos que estão por vir. Mas, nossos caminhos são sempre diferentes, apesar de bem próximos. As atitudes dos outros nos levam a reflexões tão próprias, tão nossas, que fica, praticamente impossível, não estabelecer uma conexão. E foi em meio àqueles aplausos, àquela euforia, que eu me senti parte daquilo, daquelas pessoas, daquela história. De uma maneira ou de outra, nossas vidas haviam se cruzado. Num impulso, peguei coragem e fui até o microfone:
-       Olá! Boa tarde! Eu sei que maioria de vocês não me conhece, alguns me conheceram há pouco. Mas, é que ao ver essas fotos e ser apresentada a um pouco da história de vocês, eu pude perceber o quanto a minha história e a história da minha família também passa pela história de vocês. Assim como as histórias de todas as outras famílias também passam umas pelas outras. Uma vez, meu pai me pediu uma coisa que eu não consegui fazer e agora, ele não está mais aqui para que eu faça. É por isso que olhando para tantos pais que estão aqui e tantas filhas e filhos e futuros pais e mães, que eu peço permissão para cantar a música que o meu pai gostaria de ter ouvido há cinco anos atrás.
Fui até o ouvido do músico e cochichei a canção e o tom. Em poucos segundos, encarando aquela platéia que me olhava um tanto assustada, comecei:
“And now, the end is near
and so I face the final curtain
My friend, I’ll say it clear
I’ll state my case of which I’m certain
I’ve lived a life that’s full
I traveled each and every highway
And more, much more than this
I did it my way (...)”.
Fui corajosa até o fim e não hesitei por um segundo sequer. Ao final da música, todos aplaudiam de pé e em coro gritavam, levantando as mãos: “Yeah, yeah, yeah!!!”.
E, nesse momento, como ninguém é de ferro, agradeci, olhei para o céu e chorei...

4 comentários:

  1. Que lindo, Flora! Posso ver seu pai sorrindo.

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  2. emocionante! com os olhos cheio d'água, agradeço pelo conto!

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  3. Emocionante em dobro!!! Muito dificil segurar as lagrimas, tanto naquele dia como agora. Te amo demais. Beijos da Serena.

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