terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Carta


Hoje acordei com uma vontade danada de não fazer nada. O problema é que ontem também tive essa vontade e, nada fiz. Ah, anteontem também... Na verdade, faz um bom tempo que o fazer nada me assombra. Mas, tudo bem, isso deve ser uma fase e, daqui a pouco, o ritmo frenético do trabalho impossibilitará meu corpo de exercer sua legítima prece do fazer nada.
Depois que comecei a trabalhar na televisão, passei a respeitar esse tipo de vontade. Aliás, passei a respeitar qualquer tipo de vontade e, na medida do possível, cumpri-la. É que o trabalho lá é tão exaustivo, mas tão exaustivo, que qualquer tempo livre passa a ser muito mais valorizado. O domingo de folga é uma dádiva dos deuses, onde cada hora vale uma eternidade e merece ser aproveitada como se fosse a última. Passeios ao lado das pessoas que você ama ou o simples afago mais demorado do marido funcionam como um turbilhão de fluidos que invadem meu organismo a fim de recarregá-lo.
O lado bom são as “entre-safras” – períodos entre os programas de tv em que a vida dá uma acalmada. Sem isso, certamente já haveria solicitado a minha carta de alforria. Pois bem, é numa dessas fases que me encontro agora. Não exatamente uma “entre-safra”, mas um momento em que o que estou fazendo não vem exigindo muito minha atuação e meus pensamentos. Por enquanto...
Tenho acordado quando meus olhos abrem – e, essa, é, certamente, a melhor coisa que me acontece nesses dias de calmaria – e hoje, não foi diferente. Ao contrário da teoria Schopenraueriana, acordo sempre com um excelente humor e costumo seguir dessa forma até a complicada hora de dormir. É que gosto tanto de estar acordada que ter de encerrar o meu dia é quase uma tortura (deixando claro que também divirto-me a beça nas horas de sono, mas ainda assim acho o dia curto demais). Abri os olhos e me deparei com um cartão em minha mesinha de cabeceira. Ele era delicado, todo composto por flores desenhadas à mão, nas cores rosa, cinza e preto. E dizia o seguinte:
Meu anjo,
Hoje comemoramos a data em que reafirmamos, nesta vida, a vontade e o compromisso de unirmos nossas existências com amor. Essa decisão e esse amor são renovados e reafirmados todos os dias e, assim, será para sempre! Obrigado!
Mateus”.
Caramba, é o nosso dia! Como eu poderia ter esquecido uma data tão importante como essa? Nove anos de companheirismo, amor, cumplicidade...
Sentei na cama com os dois pés no chão e falei: “Muito obrigada! Muito obrigada à quem quer que seja que tenha contribuído e que ainda contribua para que esse sonho continue a se realizar a cada dia”. Depois, deitei de novo. É que a vontade de não fazer nada voltava a me acometer.
Peguei meu livro. Estou lendo “Nação Crioula” de José Eduardo Agualusa. Excelente, por sinal. A narrativa te absorve em todas as cartas de Carlos Fradique Mendes. A que estava lendo, datada de dezembro de 1876, contava a história de um Conde e seu manipanso, um boneco esculpido em madeira vermelha, famoso por adivinhar o futuro. Em determinado momento, Fradique escreve o seguinte: “Se é possível, como me dizem que é, transmitir a voz humana a grande distância através de simples fios de cobre, então porque não há de ser possível a um boneco de pau ter visões e falar?!”.  Comecei a imaginar a repercussão que teria uma televisão de led em pleno auge do Império Romano. Seria, para eles, certamente, a manifestação de algum Deus.
Mas, ao mesmo tempo em que me divertia com esse agradável comentário, percebi que aquela mesma manifestação da escrita que demorava meses para cruzar continentes, aquelas mesmas palavras, colocadas por vezes, de forma tão pura, verdadeira e poética, por muitos que já passaram por este mundo e que por aqui continuam a utilizá-la em simples pedaços de papel, repousava ao meu lado direito, bela e silenciosa. Peguei-a novamente e tornei a apreciá-la. Escrita à lápis, vinha tomada de enorme sentimento, de uma luz incendiária. Uma lágrima marcou-a para sempre.
Comecei a pensar em como retribuir o magnífico presente deixado por meu companheiro, a fim de tornar esse dia ainda mais especial. Abri minha gaveta e achei a mesma caixa de cartões da qual ele havia retirado o que me dera. Peguei um lápis e comecei escrevendo a frase que ele me disse ao fim de encostar seus lábios aos meus pela primeira vez: “Você é apaixonante!”
Mas aí, é uma outra história...


Nenhum comentário:

Postar um comentário