sábado, 19 de fevereiro de 2011

A Camisola



-                Pior você, que vai dormir com essa camisola toda rasgada…
         Foram exatamente essas dez palavrinhas mágicas, entremeadas por uma vírgula, bastante pontuada por sinal, que me fizeram escrever esse post. O sujeito que as lançou com todas as forças em cima de mim foi meu adorável marido, Mateus.
         Confesso que o “Pior você,...” não me afetou nem um pouco. Ao contrário: me instigou a provocá-lo também. Estou acostumada com implicâncias rotineiras por parte dessa pessoa, principalmente na hora de dormir. O bom é que elas sempre vêm recheadas de gargalhadas, cosquinhas e afins. Mas, dessa vez, quatro das dez palavras embaladas por sua voz, quase me fizeram ter um ataque! E dos bons! Adivinhem quais foram elas! (tempo) Exatamente! “...essa camisola toda rasgada...”
         Definitivamente, não sou uma mulher “largada”. Me visto bem, me cuido e gosto de enxergar um resultado satisfatório em todos os espelhos que passo ao longo do dia, a começar pelo do meu banheiro, o do closet, o do retrovisor, o dos camarins, etc... Isso, pra não falar dos malditos espelhos dos shoppings e elevadores – vamos combinar que esses são os piores! Até o reflexo do reflexo de espelhos ou de qualquer outro objeto enquadrado na mesma categoria de luminância me puxam ferozmente como um imã. É algo que não consigo controlar. E, para sofrer o menos possível, procuro estar bem sempre!
         Depois de ler este último parágrafo, vocês devem estar se perguntando aonde uma mulher vaidosa como eu estava com a cabeça ao colocar uma camisola “toda rasgada” – na percepção de Mateus – para dormir com seu marido. Ataque de loucura, certamente! E, ele, tinha toda a razão em reclamar. Engano de vocês! A questão toda, que vai desconstruir esse pensamento é baseada na simples premissa de que a camisola que eu vestia não era uma camisola qualquer. Ela é “A” camisola! Com “A” maiúsculo!
         Era setembro de 1993, e eu estava prestes a completar dez anos. Os amigos já comentavam pela escola, pelo balé, pelo inglês, pela natação... Em qualquer lugar que eu fosse,  fazia questão de lembrá-los que uma data muito especial se aproximava. E essa celebração começava quando ainda estávamos em julho, afinal, dois meses é tempo relativamente suficiente para comemorar uma data tão especial assim: o meu aniversário!
          Nessa idade, a fase que antecede o nosso dia é esperada, impacientemente, da forma mais sublime e, nesse ano, não seria diferente. Ficava contabilizando quantas pessoas iriam na minha super festa e, baseada nessa conta, já imaginava a quantidade de presentes – sim, porque o indivíduo que chega numa festa de aniversário sem presente deveria ser barrado na porta por “seres preocupados com a felicidade alheia”. No caso, a minha!
          O vestido e o sapato eram escolhidos da mesma forma como uma noiva escolhe seu traje para caminhar na nave da Igreja. Fechava os olhos, antes de dormir, e me via deslumbrante, em minha festa de aniversário, sendo abraçada por todos, sendo acarinhada, sendo celebrada e admirada! Sem sombra de dúvidas, os meus amiguinhos iam querer ser “eu” naquele dia, e, algumas horas depois, comentariam cada detalhe da inesquecível noite ao meu lado! Foi, baseada nessa filosofia, que comemorei todos os meus aniversários com lindas festas, nos primeiros onze anos de minha vida: a filosofia de ser a mais importante, pelo menos, uma vez no ano!
          Os presentes eram, em sua maioria, entregues durante a festa, mas, sempre tinham umas pessoas que resolviam te dar um dinheiro uns dias antes para você comprar o que quisesse. Foi, exatamente, o que uma querida tia resolveu fazer nesse ano: me deu uma quantia qualquer – a qual já não me lembro, pois ainda era a época do “cruzeiro real”, minha gente! – e falou:
-                Compre algo bem lindo pra você! Depois eu quero ver, tá?!
          Peguei aquele dinheiro e dei pra Maria guardar até que eu encontrasse algo assim “bem lindo” pra comprar. Ficava pensando o que acabaria sendo essa encomenda tão especial. Sim, porque em alguns dias eu já haveria de ter decidido e ela repousaria linda, como adjetivada pela sua encomendadora, em meus braços.
          Fui ao shopping, algumas vezes, entre a aula de inglês e a aula de balé, ou entre a aula de jazz e a aula de sapateado, sempre acompanhada de Maria. Andávamos, andávamos, andávamos mais e mais ainda e nada. Nada que eu via era assim “bem lindo”. Não havia brinquedos nem outros artefatos que eu achasse para se enquadrar em tamanha recomendação. Desisti. Havia de ser algo realmente “bem lindo”. Tentaria, novamente, num outro dia... Frustrada e um tanto intrigada, retomei a minha rotina, sempre com aquela expectativa atrás da orelha: que presente seria esse “bem lindo” que eu mesma haveria de escolher?
          No dia seguinte, ao sair da escola, fomos ao banco, no Largo da Freguesia. Esse local era repleto de camelôs e, como toda criança consumista, não desgrudei os olhos de um objeto sequer que cruzasse minha trajetória. O “meu” haveria de estar em algum lugar próximo e eu não poderia deixar escapar nada. Maria cismava em reclamar:
-                Vamos, Flor, anda logo! Outro dia, a gente volta com mais tempo. Hoje não dá!
          Era triste, mas era como deveria de ser. Cabisbaixa, fui seguindo-a em direção ao carro até me deparar com “ela”: “A” camisola!
          Repousada sobre um corpo imóvel, lá estava ela, linda a me encarar. Ela era cinza com rajadas de branco, e tinha em seu centro um lindo jardim, como numa pintura de Monet. Abaixo das flores, levava os dizeres: “My Beautiful Garden”. Meu coração se encheu de alegria! Sim, era ela o presente “bem lindo” que eu estava procurando.
           Corri para dentro da loja, com Maria ensandecida vindo atrás, e catei a primeira vendedora:
-                Ei, moça! Eu quero ver aquela camisola ali! – a educação ficou totalmente de lado por esse momento.
-                Pra você? – que pergunta idiota, pensei. É óbvio que era para mim!
-                Sim, pra mim.
-                Ah, pra criança não tem não. Só pra adulto.
-                Mas, eu quero mesmo assim. – finalizei, decidida.
           A moça olhou para Maria como num gesto de incerteza em relação a atitude insana que estava prestes a ser executada. Maria assentiu com a cabeça. Era por isso que eu gostava tanto dela. Ela era minha cúmplice favorita!
           Enquanto Maria efetuava o pagamento no caixa, eu fiquei observando a moça embalá-la.
-                É pra presente? – perguntou.
-                Sim, pra presente!
           Abri um sorriso enorme, já me imaginando rasgando sua embalagem depois de minha festa e estreando-a como a noiva estréia a sua camisola na noite de núpcias.
           O dia do meu aniversário transcorreu cheio de felicidade. Mas, apesar disso, foi a primeira vez que torci para minha festa acabar rápido. Queria chegar logo em casa e colocar minha camisola, em meu ainda minúsculo corpo, para dormir.
           Lembro que, durante a festa, minha tia veio até mim e perguntou:
-                Conseguiu comprar algo bem lindo?
-                Sim! – respondi, extremamente feliz com a tarefa confiada e magistralmente cumprida.
          A sensação que tive ao vesti-la foi a mesma que experimentei ao colocar meu vestido de casamento pela primeira vez. Fiquei minutos me admirando no espelho. Dançava, saltava, fazia ela girar como uma saia de baiana. Gargalhava junto a Maria que cantava fados portugueses para me embalar naquela brincadeira.
          Ontem, quando coloquei-a para dormir, me olhei no mesmo espelho que havia me feito tão feliz há dezoito anos atrás. Ela já não bate mais na minha canela, afinal de contas, eu cresci. Começa linda no meio da minha coxa e vai subindo com o seu encantador jardim até o meu pescoço. Desgastada pelo tempo e pelo uso, ela tem sim alguns furinhos bem pequenininhos. Mas, não são quaisquer furinhos. São furinhos de quem me acompanhou por mais de metade da minha vida. Quantas vezes já choramos e já rimos juntas. Quantas vezes ela já foi minha única companheira.
          Por tudo isso, quando Mateus, ontem, jogou essas palavras impróprias para cima dela, quase tive uma síncope. Respirei fundo e resolvi contar essa estória de parceria e cumplicidade para ele.
           Ao fim de toda essa ladainha, ele me fitou e, como eu esperava, completou:
-                Você nunca esteve tão linda!
            Isso, eu já sabia.
Esse era o meu Mateus... E essa é a minha camisola!

Um comentário:

  1. Que romântico! Gostaria de conhecer a peça, se não for indiscreto de minha parte. Beijíssimo.

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